Portões da Baróvia. Divulgação de Curse of Strahd. (Artista: Jedd Chevrier)

Nos últimos tempos tenho tido a experiência de narrar para vários grupos diferentes e, por isso, a possibilidade de experimentar formas diversas de construir narrativas. Só neste ano de 2018, pude narrar a aventura Curse of Strahd, uma versão resumida de Princes of the Apocalypse, atualmente me aproximo do final de Lost Mines of Phandelver, todas de Dungeons & Dragons 5E. Além disso, tive contato com jogos diferentes, como The Quiet Year e Dialect. Um dos pontos principais que pude observar com essa variedade de títulos foi a forma com que cada um apresenta uma narrativa. Vou explicar.

A narrativa embutida

A aventura do kit introdutório da quinta edição de Dungeons & Dragons, Lost Mines of Phandelver, é excelente para se apresentar o jogo e o sistema de regras para novos jogadores. Ela começa simples, os personagens são contratados por um anão para entregar uma carroça cheia de suprimentos em um vilarejo próximo. Se você, assim como eu ao ler a aventura pela primeira vez, pensou que “carroça de suprimentos + estrada = ataques de bandidos”, marcou um ponto no placar! Nesse caso, os bandidos são goblins, que emboscam os personagens na estrada depois de, pasmem, capturarem o mesmo anão que os empregou e que possui o mapa para uma mina cheia de tesouros importantes.

A sequência de acontecimentos então é um tanto quanto óbvia: o grupo derrota os goblins, procura sinais do anão, viaja para o vilarejo, descobre que o mesmo é atacado com frequência por um grupo de rufiões, promete ajudar o povo sofrido, conversa com vááários NPCs diferentes, e assim por diante. Esse tipo de aventura é bastante comum, e recebe a alcunha de aventura sobre trilhos (ou railroad). Esse nome se deve ao fato de sua estrutura linear, onde para alcançar uma etapa, os jogadores devem superar a anterior. Toda a sequência de acontecimentos já está previamente definidas, e existem diversos gatilhos que fazem com que a história ande.

A vila de Phandalin, principal localidade da aventura The Lost Mines of Phandelver. (Artista: Mike Schley)

E esse formato tem uma série de vantagens! A sequência de acontecimentos segue uma lógica bastante forte, a história costuma ser consistente, a narrativa se constrói de forma linear e existem momentos de clímax já planejados e distribuídos. Geralmente é o tipo de aventura mais indicado para mestres iniciantes ou com tempo limitado de preparar eventos, encontros e desafios para seu grupo de amigos. A narrativa construída por essas aventuras já está embutida em todo o fluxo de acontecimentos.

Alguns jogos de videogame se utilizam da mesma estrutura, e contam histórias fenomenais. Se você já jogou algum dos novos títulos de Tomb Raider, ou qualquer Resident Evil ou mesmo um Prince of Persia, você já teve contato com uma narrativa embutida. Nesses jogos, as vezes temos a oportunidade de experimentar um elemento diferente de jogabilidade que acaba seguindo a trama, como a cena incrível de combate cotra Baba Yaga em Rise of the Tomb Raider (não é spoiler, é o nome do DLC!). Porém esses elementos se tornam indisponíveis uma vez que o desafio proposto seja superado. Algo parecido acontece nas aventuras sobre trilhos. Depois que o grupo limpa uma masmorra dos monstros que a habitavam, dificilmente voltarão ao mesmo lugar.

Trilhos também oferecem escolhas, mas elas são predefinidas. (Foto: parque de manobras ferroviário na Índia)

No meu ponto de vista, esse modelo de aventuras também apresentam algumas desvantagens. O maior exemplo é a dificuldade de encaixar elementos relevantes para as histórias individuais dos personagens de forma orgânica, que não atrapalham o andamento da aventura ou sem fazer parecer que o mundo está esperando o grupo terminar só mais uma missão secundária para que os acontecimentos voltem a ocorrer no ritmo normal. Afinal, quando o grande vilão está prestes a assolar o pequeno vilarejo no meio da floresta com a sua maldade, como justificar que o bardo tire um tempinho para ir atrás pistas de seu amor perdido? Ou que o exótico mago tabaxi dançarino do grupo possa procurar por seu chocalho perdido (exemplo real, gente).

Essas características não tornam as aventuras limitadas e nem ruins, apenas definem um modo de jogo e uma forma de construção da história. Cabe ao narrador e ao grupo entender a proposta e se adaptar. Modificações também não são impossíveis, mas exigirão um esforço maior do mestre, e mais tempo de preparação.

A narrativa emergente

O outro estilo de aventuras que quero comentar é o famoso gênero da caixa de areia (ou sandbox). Como o próprio nome sugere, você pode fazer o que quiser com a caixa de areia.

Exemplo de jogador aproveitando seu poder de escolhas numa aventura do estilo “caixa de areia”.
O módulo de aventura para AD&D, 1985. (artista: Keith Parkinson)

Algumas aventuras oficiais da nova edição trazem fortes características de jogos sandbox. A Princes of the Apocalypse, uma releitura da clássica aventura Temple of Elemental Evil, passa várias páginas explicando para o leitor o contexto dos acontecimentos da região onde os eventos da aventura se concentram, os quatro cultos elementais e diversos mapas de lugares que podem ser visitados pelos personagens a (quase) qualquer momento. Também ensina como fazer a narrativa semiplanejada da aventura responder às diversas possibilidades de ação desses personagens, e ainda traz quatro opções de um vilão final, que será selecionado de acordo com os eventos ocorridos até o momento do confronto derradeiro. Ainda existe uma certa linearidade de situações na história, mas ela acontece em uma estrutura de fluxograma, pesando mais as opções dos jogadores, as reações do narrador e as consequências de tudo. Aventuras assim geralmente permitem que o grupo retorne a lugares já explorados, e sugere novos eventos para esses mesmos lugares.

Outro exemplo, ainda em D&D, é o título Curse of Strahd, que também é uma aventura clássica revisitada. Neste caso, a famosa Expedition to Castle Ravenloft. Esta campanha, na minha opinião, oferece possibilidades ainda mais interessantes para o narrador e os jogadores.

Logo no começo, os personagens são transportados de onde quer que estejam para o reino da Baróvia, pelas brumas e pelos Poderes Sombrios que regem o semiplano (conceitos que um dia eu vou trabalhar mais aqui no site, prometo!). Isso já sugere que, enquanto eles não saírem desse lugar, pouco poderão avançar em seus objetivos e histórias pessoais, já que estão em um lugar completamente diferente e isolado, uma dimensão de bolso.

Os personagens são colocados, a princípio, em uma sequência linear de eventos: uma estrada que margeia uma floresta escura os leva até as muralhas do reino, e em seguida a um vilarejo repleto de pessoas assustadas e desconfiadas. Após resolverem problemas do vilarejo, surge a possibilidade de viajarem até um acampamento Vistani (que são basicamente uma versão mística de ciganos romenos), onde as coisas começam a ficar muito interessantes.

Nesse acampamento é revelada parte da história do reino e de seu governante, um vampiro chamado Strahd (quem diria?), e o grupo tem seu futuro lido nas cartas do baralho Tarokka pela líder Vistani, Madame Eva.

Cartas do Tarokka. Qualquer semelhança com o Tarô não é mera coincidência. (Artista: Chuck Lukacs)

O livro da campanha ensina o narrador a usar um baralho de cartas comuns para simular a leitura do Tarokka, trazendo em seu início um longo capítulo de conversão e interpretação dos resultados.

As cartas são usadas para definir lugares que os personagens devem visitar e objetivos que devem alcançar: Uma carta leva a um aliado, outras duas à itens poderosos que os ajudarão no confronto com Strahd, a quarta carta à uma fonte de conhecimento sobre seu adversário, e a última indica onde acontecerá o embate final com o vampiro. No entanto, as cartas são enigmáticas e suas respostas precisam ser interpretadas.

Basicamente, a narrativa emerge a partir das decisões que os jogadores tomam com essas informações em mãos. Ela surge das interações, das descobertas, dos erros e derrotas, e dos objetivos concluídos pelo grupo. Cada vez que você joga essa campanha do início ao fim, a experiência proporcionada é diferente.

O Mundo vai ser destruído por dragões. Mas só depois que a minha casa estiver confortável.

Novamente traçando um paralelo com videogames, podemos usar Skyrim como exemplo. Eu mesmo tenho mais de 250 horas de jogo, e admito sem nenhum pudor que eu nunca vi o final da história principal. Mas eu vivi as minhas próprias narrativas, enquanto combatia bandidos nas estradas, tentava solucionar mapas de tesouro, aprender novas palavras na língua dos dragões e juntava materiais para construir a minha casa. Eu até adotei uma criança no orfanato!

Outra série famosa por proporcionar narrativas emergentes sem que os jogadores saibam é The Sims. Nenhum título da série tem um roteiro detalhado de eventos e acontecimentos. Tudo reage às escolhas do jogador. Se o seu Sim vai sair à noite para paquerar, ou ficar em casa comendo pizza com amigos, é decisão sua. Se ele vai se tornar um grande cientista, ou se vai largar a promissora carreira nos laboratórios da universidade para virar ator ou jogador de futebol, também depende de você. Existe até a opção de ele viver alguns momentos de puro terror quando estiver nadando na piscina e as escadas sumirem misteriosamente!

Quem nunca aterrorizou os Sims, que atire a primeira pedra.

Eu tenho certeza que você já entendeu o que é a narrativa emergente, e como ela emerge das escolhas e ações dos jogadores sem ser completamente proposta, mas sim possibilitada, pelo narrador. Mas eu ainda preciso dar um último exemplo.

Há uns dias atrás eu falei sobre o incrível jogo chamado The Quiet Year. É um jogo com uma premissa bastante simples, mas que proporciona uma narrativa fenomenal. É inacreditável a variedade de histórias que podem ser contadas com aquelas 52 cartas e a criatividade de quatro pessoas. Podemos ter cenários onde as coisas vão bem até a hora em que dão errado, histórias onde algo sinistro paira sobre a comunidade desde o começo, ou mesmo sequências de acontecimentos ruins que precisam ser superados um a um com o esforço coletivo das pessoas.

A narrativa emergente traz uma série de vantagens, certo? Em contrapartida, é muito fácil se perder nesse tipo de jogo, ou se sentir sem rumo, sem um elemento para nortear o grupo e as partidas. No caso das campanhas de D&D, esse elemento pode ser uma grande catástrofe se aproximando, ou um lorde sombrio que, se não for confrontado nos termos do grupo, irá escolher o momento mais vantajoso para si e encurralar os heróis. Em outros jogos, a simples visão da pilha de cartas chegando ao fim é o suficiente para criar um senso de urgência e fazer com que a história se encaminhe.

Diferente de Skyrim, onde o fim do mundo podia esperar eu subir só mais uma montanha, ou explorar só mais uma floresta, o RPG tem um narrador que, em consentimento com os demais jogadores, pode mexer uns pauzinhos e criar uma tensão crescente e inteligente, que se adapta e privilegia a diversão do grupo.

Talvez eu não tenha sido tão imparcial quanto eu planejei quando comecei a escrever esse texto, e vocês devem ter percebido qual dos tipos de narrativa me atrai mais. Mas eu garanto que as duas tem grande valor e potencial de gerar lembranças e histórias muito divertidas entre o seu grupo de jogadores!