Ao criar seu mundo secundário, seja para literatura, jogos de RPG ou outros vícios secretos, é comum travar na hora de inventar os nomes dos lugares e das personagens. Claro que a gente pode partir do jeito difícil, começando com a origem do universo, ou fazer do jeito simples e que vai enganar bem quem for entrar em contato com seu texto. Em poucas palavras, você pode (1) criar idiomas inteiros ou (2) fingir bem o bastante para acreditarem que fez isso.

Eu não sou um linguista (apesar de ter vontade), então arranho bastante na primeira opção, mas até que dou pro gasto na segunda. Esse texto vai tratar disso: como criar uma estrutura simples de um idioma inventado que sirva para dar nomes a lugares. A lógica básica dessa estrutura é a mesma para se criar idiomas inteiros, mas nesse artigo vamos focar nos passos para uma língua de toponímia.

Onde for possível, vou tentar dar duas opções em cada passo: uma mais simples e outra mais complexa, e sua carteirinha de nerd é que pode determinar qual delas vai usar.

Um aviso!

Estou fazendo simplificações extremas aqui, e omitindo vários conceitos mais complexos para facilitar o processo de criar idiomas de mentirinha. Isso não é um tratado de linguística, então não me processem (mas se eu disser alguma coisa muito absurda, aceito sugestões!).

(Se você quiser pular toda a parte complicada e tentar se virar sem rodinhas, pule para o passo 4: Criando seu léxico. Mas aviso que vai cair e se ralar bastante!)

Passo 0: Por quê?

Antes de começar a criar um pseudoidioma para nomear as coisas do seu mundo é legal pensar num porquê de fazer isso. A principal utilidade de estabelecer uma língua de toponímia é a de mostrar as diferenças culturais entre regiões habitadas por povos diferentes, visto que línguas estão entre os elementos centrais que determinam a identidade de um povo.

O que é preciso manter em mente é o “ponto de entrada” no seu mundo. De modo geral, em histórias de mundos secundários, é comum que a personagem principal esteja descobrindo o cenário junto com quem lê. Se o mundo for conhecido pela personagem, é provável que os nomes dos lugares estejam na língua dela, ou seja, na mesma língua de quem está lendo. A partir do momento em que a personagem se aventura em terras estranhas, pode acontecer basicamente três coisas: ela dá nomes novos (o que é raro), ela se lembra de nomes antigos que sua cultura usa, ou ela aprende os nomes dados por outros povos.

(E essa é a minha maior rusga com mundos secundários [geralmente vindo de livros dos EUA] cheios de nomes que não são traduzidos para o português: afinal, as personagens daquele mundo têm um idioma próprio, ou elas falam inglês?)

Esse passo zero está ficando longo demais, mas ainda cabe aqui falar de endônimos e exônimos. Endônimos são os nomes dos lugares dados por quem vive ali, enquanto exônimos são os nomes de um lugar dados por estrangeiros. Um dos maiores exemplos disso é aquele país da Europa cujo endônimo é Deutschland (a “Terra do Povo”), mas que tem uma longa história de ser composto por grupos diversos em várias épocas, e assim recebeu exônimos de acordo com o que era mais conhecido em dado momento: em português há Germânia (onde vivem os Germanos), Alemanha (onde vivem os Alamanos), e muitos outros em outras línguas. Exônimos podem tanto ser algo completamente externo quanto uma adaptação fonética a partir do idioma original. Como mapas costumam ter um único autor, é comum que os nomes reflitam esse ponto de vista.

No mapa do Condado, todos os lugares são conhecidos, então quase todos soam familiares, mesmo sem você ler uma página da história. No mapa da Terra-média, temos uma profusão de nomes em Sindarin ou adaptados do Westron, mas muitos deles aparecem com a tradução, visto que são famosos/conhecidos pelos hobbits.

Mas enfim, mão na planilha de Excel massa.

Passo 1: Como sua língua soa?

É terrivelmente comum que cenários de fantasia tenham versões reimaginadas das línguas que Tolkien criou para a Terra-média. Aliás, é impossível falar desse assunto sem falar do autor, visto que deve ser o maior culpado por essa ideia maluca de criar idiomas pra histórias.

Tolkien atrelou os idiomas aos povos de Arda, criando divisões linguísticas onde as culturas se dividiam: há um idioma principal dos anões (com sons duros), dois ou três dos elfos (com sons que só podem ser definidos como melífluos) e por aí vai. Há muitas outras, mas é relevante falar da língua negra (que tem sons maus e desagradáveis) e do Westron, que seria a “língua comum”, que é traduzida para o idioma de quem lê: nomes em inglês nas edições anglófonas, em português nas lusófonas etc.

Tenha em mente a impressão que quer causar em quem lê: quanto mais estranho for o idioma, provavelmente mais estranha será a cultura em comparação com a personagem “ponto de entrada” naquele mundo.

Escolhendo sons: o método complexo

A escolha de sons do seu idioma depende de duas partes: consoantes e vogais. Falando de um jeito simples, consoantes são os sons que você faz quando interrompe ou altera de alguma forma a passagem de ar pela sua boca. Vogais são os sons que você faz sem modificar essa passagem.

Consoantes

Existem muitos tipos de fonemas consonantais, determinados pela maneira que elas são formadas no seu ~trato vocal~ (como é chamado o sistema que vai da sua traqueia até seus lindos lábios). Essa categorização depende do modo de articulação (como o som é formado) e do ponto de articulação (onde o som é formado).

Os modos de articulação da língua portuguesa (simplificando muito) classifica as consoantes como:

  • Plosivas, aquelas em que o ar é interrompido por completo, brevemente.
  • Fricativas, que surgem quando o ar é bloqueado parcialmente (ele é friccionado).
  • Africadas, uma espécie de mistura de plosivas e fricativas: parte do som é interrompido, parte é friccionado.
  • Nasais, as consoantes que saem pelo nariz, porque a boca fecha a passagem de ar.
  • Vibrantes, que nascem de uma “vibração” de uma parte do trato vocal com outra. Em português temos a vibrante simples (ou tepe) no r de “caro” e a vibrante múltipla (ou flepe) quando uma avó italiana fala o rr de “carro”.
  • Aproximantes laterais, grosso modo, são os sons de quando partes do trato vocal se aproximam pela lateral (olha que nome intuitivo).

Segue uma tabela com os principais sons do nosso idioma, e os pontos de articulação com seus nomes oficiais. Repare que as colunas vão da parte mais externa da boca para a mais interna, enquanto as linhas vão da maior interrupção do ar para a menor.

A tabela de fonemas usa o Alfabeto Fonético Internacional (AFI), que associa cada fonema a um símbolo diferente, visto que há muito mais sons que os representáveis pelas 26 letras do alfabeto latino. Quase todas as letras que estão ali são autoexplicativas, com exceção de algumas:

  • ɡ é o som de g em gato, nunca de g em gelo
  • ʃ é o som de ch em mancha ou de x em xícara
  • ʒ é o som de j em jaca
  • ɣ é o som de rr em carro
  • t͡ʃ é o som de tch em alguns dialetos ao pronunciar o primeiro t de tinta
  • d͡ʒ é o som de dj em alguns dialetos ao pronunciar o d em dita
  • ɲ é o som representado pelo nh em ganho
  • ɾ é o r de caro
  • ʎ é o som representado pelo lh em molho

Além disso, as consoantes de cada categoria também podem ser divididas entre surdas e sonoras (ou desvozeadas e vozeadas, respectivamente). Simplificando, as surdas não vibram as cordas vocais, mas as sonoras sim. É a diferença entre o P (surdo) e o B (sonoro), e é representada na tabela quando há células com duas consoantes (a da esquerda é surda e a da direita é sonora).

Por que entrar nesses detalhes? Porque é nessa categorização granular que você descobre como pode incluir ou remover sons do seu idioma de forma mais consistente. Por exemplo, ter um idioma que só tem consoantes surdas, uma língua que não usa fricativas ou um povo que não usa a parte do fundo da boca para fazer nenhum som.

E olha que aqui estou usando apenas o português como exemplo! Existem línguas com muitos outros pontos de articulação e fonemas completamente diferentes do que somos habituados: cliques, paradas glotais e mil outras coisas. O !Xóõ é considerado o idioma com o maior inventário fonético do planeta, por exemplo, enquanto o Pirahã tem apenas três vogais e sete consoantes.

Vogais

Assim como as consoantes, há vários fatores que determinam o tipo de cada vogal, mas todos eles envolvem basicamente a forma e a abertura dos lábios e a posição da língua na boca.

Além disso, há as vogais nasais, que envolvem parte do som sair pelo nariz. Mas é sempre bom lembrar que estamos falando de fonemas, e não de letras. Aprendemos que o português tem cinco vogais, mas isso é válido para a escrita. Em termos fonéticos, temos pelo menos quinze, sem contar as combinações. O AFI deixa claro como muitos sons são idênticos, mas por vezes escrevemos usando letras diferentes:

Adaptado de http://fonologia.org/fonetica_vogais.php

Assim como as consoantes, saber dessa classificação toda de vogais permite que você faça escolhas mais conscientes de quais delas vai querer no seu idioma.

Se quiser escolher o inventário fonético do seu idioma dessa forma, uma coisa legal de se fazer é consultar o Alfabeto Fonético Internacional completo. Nesse site há uma tabela interativa onde basta clicar em cada som para ouvi-lo.

Finalizando

Depois de toda essa elocubração, o resumo da ópera é: escolha os fonemas consonantais e vocálicos que achar que fazem sentido no idioma que quer criar. Esse processo acaba sendo meio instintivo, porque no meio do caminho você já vai meio que ter em mente a sonoridade que quer passar. Mas uma dica para deixar os idiomas com “caras” mais específicas é fazer o que comentei mais acima: escolher apenas alguns grupos fonéticos, restringir outros e por aí vai.

Escolhendo sons: o método simples

Você pode evitar essas especificidades todas e fazer tudo isso da forma mais simples possível: pegue o nosso querido alfabeto latino e liste quais consoantes e vogais vai querer usar. Vai ter alguma a mais? A menos?

O problema de fazer dessa forma é que você vai acabar se limitando, e provavelmente vai acabar com um inventário fonético bastante parecido com o que já lhe é familiar.

Passo 2: Como os sons da sua língua se organizam?

Esse passo não tem um método simples. Acho que a única forma de “simplificá-lo” seria o de pensar nos sons que você escolheu e usá-los para escrever dezenas de palavras inventadas, para ver se consegue perceber se algum padrão natural surge. De novo, saber das regras pode ser a melhor solução (mesmo que pareça complicadinho no começo).

Jun.tan.do fo.ne.mas

Basicamente: sons se agrupam em sílabas. Existe toda uma estrutura mística de formação de sílabas que a gente não aprende na escola. Para definir isso, existem algumas convenções, e para iniciar os trabalhos é importante que você já tenha escolhido suas consoantes e vogais.

Vamos supor que nosso idioma vai ter as consoantes b, f, m, p, r, s e z, e as vogais a, e e o. Isso forma um inventário fonético extremamente reduzido, mas vou fazer isso para facilitar o exemplo. Depois de decidir, anotamos elas assim:

  • C = b f m p r s z
  • V = a e o

Uma das estruturas silábicas mais comuns é CV, ou seja, formada por uma consoante e uma vogal. Em português temos várias estruturas, entre elas as que apresentam encontros consonantais, ditongos, tritongos etc. Vou colocar alguns exemplos e destacar o principal em cada linha, mas perceba que cada palavra pode ser formada por vários desses bloquinhos menores:

  • V – á.ri.do, u.va,
  • CV – pá, ca.sa, bo.la, ba.na.na
  • CVC – man.to, pi.res, sor.te
  • CCV – glu.tão, pra.to, pru.mo
  • CCVC – brus.co, cris.tal, tras.te

Há outras estruturas, mas acho que já deu pra entender! Seu idioma pode ter qualquer combinação possível de vogal e consoantes, desde que elas sejam… pronunciáveis. Quando estabelecer as suas estruturas, você pode usar alguns atributos específicos. Por exemplo: CVC significa que a sílaba é formada por uma consoante, uma vogal e uma consoante, obrigatoriamente. CV(C) já indica que a última consoante é opcional, enquanto (C)V(C) quer dizer que ambas as consoantes podem ficar de fora (se elas quiserem).

Para fins didáticos, você pode complicar um pouco mais essas regras. Por exemplo, querer que as consoantes surdas sejam bastante importantes, a ponto de merecer um destaque na estrutura silábica. Aí, no nosso código, retomando o inventário que escolhemos lá em cima, decidimos que elas são representadas pela letra S:

  • C = b m r z
  • V = a e o
  • S = f p s

Aí inventamos a estrutura silábica SV(C), que pode gerar sílabas como fab, far, foz, pez, se, seb, soz e assim por diante. Vou aproveitar essa última sílaba para batizar nosso idioma: Soz.

O japonês é um idioma que conhecemos pelas sílabas bastante marcadas; as estruturas mais evidentes da língua, aos nossos ouvidos, são V, CV e CVN (a.ri.ga.to, ka.ta.ka.na, kan.ban).

Claro que seu idioma dificilmente vai ter apenas uma estrutura silábica, então pense em algumas (cinco ou seis bastam, pra não te enlouquecer) e forme as palavras baseadas nelas. É nesse ponto que você vai começar a pensar no tamanho das palavras, ou seja, qual é o número de sílabas que elas vão ter, num geral (na escola a gente aprende isso como palavras monossílabas, dissílabas etc.). Há idiomas que tem muito mais monossílabas, outros têm palavras imensas… e isso pode ser um fator que diferencie suas línguas, se você estiver fazendo mais de uma.

Encontros consonantais e outras regrinhas específicas

Idiomas têm regras específicas envolvendo posicionamento de alguns fonemas (vou simplificar horrivelmente aqui e às vezes chamar “fonema” de “letra”, tá?). Algumas regras comuns envolvem sons que aparecem apenas no começo, no meio ou no fim; sons que nunca acontecem no final de palavras — por exemplo, sabemos que em português as únicas consoantes vistas no final de palavras podem ser L, M, N, R, S, X, e Z.

Da mesma forma, há combinações de sons que são mais comuns, e outras que nunca acontecem naquela língua. Ainda usando o português como exemplo temos:

[plosiva] + r: pra, tra, bra, cra, gra

[plosiva] + l: pla, tla, bla, cla, gla

Mantenha em mente que essas regras são do que pode acontecer, e não de que essas são as únicas combinações que existem. A partir disso, você pode criar suas próprias regras, tanto das coisas mais comuns quanto daquelas que nunca acontecem. Voltando ao nosso idioma inventado, o Soz, podemos dizer que existem as seguintes:

  • C = b f m p r s z
  • V = a e i o

[fricativa] + r. Assim, há muitas palavras com fra, sra, zra.

[plosiva] + [fricativa] (apenas no fim de palavras): seria comum términos em –ps, –pf, –bz.

[m] nunca acontece no final de palavras: términos como –mam, –sam, –om não existiriam.

Até aqui estamos falando de encontros consonantais. Mas também há encontros vocálicos, com duas ou três vogais, os ditongos e tritongos: ai, ei, oi, ui, uai etc  — lembrando que isso se refere a encontros que acontecem na mesma sílaba. Tuiuiú não é um pentatongo (tui.ui.ú). Em português esses encontros quase sempre envolvem as vogais i e u, que fazem o papel de semivogal, “carregando” outra vogal no começo ou “diminuindo”  no fim da sílaba.

Em português há ditongos crescentes (i + vogal ou u + vogal) e decrescentes (vogal + i ou vogal + u). Seu idioma pode restringir ou dar preferência a um tipo de combinação. O Quenya, uma das línguas da Terra-média, por exemplo, só tem ditongos decrescentes: ai, oi, ui, íu, eu, au (ainda que na Terceira Era os elfos costumavam pronunciar íu como , num ditongo crescente; é, Tolkien chegou nesse ponto).

Em relação a sons que ocorrem em alguns contextos, seu idioma ou os dialetos dele pode ter regras que mudam determinados sons dependendo de onde ocorrem. Por exemplo, se uma palavra em português terminaria em /t/, é comum que ele se torne /ti/ ou /tch/, e isso pode ou não ser visto na escrita — apesar de escrevermos Parmalat, falamos /parmalati/ ou /parmalatch/, dependendo do dialeto.

Resumindo

  1. Com suas consoantes e vogais definidas, defina as principais estruturas silábicas.
  2. Pense no tamanho mais comum das palavras: três sílabas? Duas? Quatro?
  3. Determine regras específicas: encontros consonantais e vocálicos, sons que só podem aparecer em determinada posição, encontros proibidos etc.

Entonação e pronúncia

Não vou entrar nesses detalhes aqui (porque o texto já está imenso), mas considere a forma como as palavras são pronunciadas: há vogais longas? Entonação específica? Há acentos para marcar isso? Há mais oxítonas, paroxítonas ou proparoxítonas?

Um exemplo de regra simples seria dizer que dissílabas sempre têm a primeira sílaba tônica, enquanto palavras maiores sempre teriam a penúltima tônica. No nosso idioma, isso resultaria em palavras que soariam como báfa, mrápe, sésre, safrámeps, zramómo, fromesáfra. Note que coloquei o acento agudo só para esclarecer a entonação: se a sua regra for consistente, não vai precisar de acento nenhum para sinalizar isso!

Passo 3: Transcrição

Nesse artigo não vou falar sobre sistemas de escrita, mas precisamos definir como os fonemas do seu idioma inventado são representados usando o alfabeto latino (afinal, você vai usar o teclado de sempre para escrevê-lo). Existem algumas convenções linguísticas históricas que fazem com que algumas letras representem mais de um fonema (pense no x com som de /z/, /ks/ e /sh/), ou então que várias letras diferentes tenham o mesmo som, mas que sejam usadas apenas em determinados contextos, como c, k e q. Seu idioma vai ter isso?

Uma coisa bastante comum é a de reservar letras específicas para denotar línguas exóticas. Por exemplo, retomando Tolkien, o som de /k/ em Quenya é sempre representado pela letra c (Celeborn se lê /keleborn/), mas em Khuzdûl (o idioma dos anões) sempre se usa k. É um jeito claro de identificar os dois idiomas. Da mesma forma, usar q para representar /k/ é algo que soa exótico pra gente, então é muito comum que essa letra seja usada para mostrar que uma língua é estranha: sua amiga Carla deve ser legal, mas a Qarla com certeza esconde alguma coisa.

Existem inúmeros diacríticos (os “acentos”) que são usados para modificar o som de vogais e consoantes em muitos idiomas. Em português não temos diacríticos em consoantes (o Ç é uma consoante separada, o rabinho não é um “acento” do C; aliás, curiosidade: por volta de 1500 o Ç era usado para representar o som de /dz/). Nem sempre é fácil usar esses símbolos especiais usando nosso teclado padrão, mas dependendo do seu nível de comprometimento (e maluquice) pode ser interessante usá-los para dar uma cara mais diferentona pra sua língua inventada.

Por exemplo, o fonema ʃ em português é escrito com ch ou x, mas é representado em esperanto com ŝ. O espanhol tem o ñ pelo que seria o nosso nh; há idiomas que representam vogais longas com um mácron (como o māori), e outras que usam os acentos que somos acostumados para mostrar variação tonal (como o yorùbá).

Uma observação quanto a um sinal específico: muita gente, quando está criando palavras sem ter um guia lindo como este, usa apóstrofo (‘) como mera decoração ou para qualquer palavra soar exótica. Vou usar esse espaço que são Titivillus me concedeu para pedir: evite isso. É interessante pensar no apóstrofo como tendo uma função: em muitos idiomas ele representa uma supressão de vogal (como quando escrevemos d’água), mas há outros em que ele é um fonema, uma consoante! — no guarani, por exemplo, ele representa uma consoante oclusiva glotal, uma breve interrupção do ar entre uma e outra vogal (vista até no nome do idioma: avañe’ẽ). Esse som não existe em português, mas no inglês é o espaço de silêncio do uh-oh!.

O mesmo vale para quaisquer sinais de pontuação e acentuação que você quiser usar: pense no porquê de colocá-los no idioma, em vez de usá-los apenas como enfeite.

Passo 4: Criando seu léxico

Os passos até aqui são os mesmos se você estiver criando um idioma inteiro. A diferença é que nesse texto vamos usar isso tudo para criar toponímia, então nosso vocabulário e (pouquíssimas) regras gramaticais não vão se afastar disso.

Nomes de lugares costumam ter três origens: geografia, quando descrevem o ambiente; história, quando falam de algo que aconteceu ou que havia ali; e cultura, quando razões culturais batizam o local de alguma forma. Como vocabulário de exemplo, vou partir de termos geográficos, que são os mais comuns e genéricos para se começar.

Vocabulários

Nomes geográficos falam sobre o local. Belo Horizonte, Serra Pelada, Pico da Neblina, Morro Branco e assim por diante. Não existem listas definitivas de palavras a serem criadas — depende do que é relevante para o idioma que você vai criar. Num local hipotético onde não existam montanhas, talvez não exista a palavra para “montanha”, e um habitante dali ao ver uma pela primeira vez pode chamar de “terra alta”, “terra grande”, “buraco invertido” (????) ou coisa do tipo.

Três listas que podem nos interessar: (1) marcos naturais, (2) elementos artificiais e (3) adjetivos. Vou colocar uma lista minúscula de cada tipo aqui, mas lembre-se que você pode expandi-las o quanto quiser.

Coloquei aqui alguns termos básicos. Seu idioma pode não ter alguns deles, ou então ser muito mais específico: ter cinco denominações diferentes para “montanha” baseado na altura delas, ou então vários termos para “rio” baseado nas dimensões (nós temos isso!).

Seu mundo/cultura pode ter quantos elementos artificiais sua imaginação mandar. Eles se referem a tudo aquilo que não é um marco natural, que foi construído por mãos humanas [ou da espécie preferida].

Adjetivos são importantes justamente por complementarem a descrição dos lugares. Coloquei alguns bem básicos aqui, porque a lista é basicamente incontável. Muitos deles são usados quando formamos nomes por diferenciação: podemos ter a cidade de Blibli, depois Nova Blibli, Velha Blibli, Alta Blibli e bliblibli em diante.

Criando palavras

Não existe uma fórmula para escolher sons para cada palavra. Essa parte é bastante subjetiva, mas uma regra simples é a de que quanto mais comum for uma coisa, mais simples será a palavra que se refere à ela. Você pode pensar nisso tanto em relação a fonemas, encontros consonantais ou em quantidade de sílabas. Isso é muito visível nas palavras que a maioria dos idiomas usa para se referir a pai, mãe, água, aqui, ali, .

O que você pode estabelecer são regras de formação de palavras. Não vou entrar em detalhes nesse sentido, mas pense nos nossos radicais gregos e latinos, e em como eles dão origens a vários termos diferentes: pedra, pedreira, pedregulho, pedrisco. Também podemos pensar em palavras que se unem como prefixos ou sufixos (como a- para negação, in– para inserção, –eiro para profissão etc).

Tudo o que vimos até agora vai ajudar na criação de vocábulos. Definimos o inventário fonético do nosso idioma, a estrutura silábica e como ele vai ser escrito. Agora, aplicamos essas regras todas na hora de inventar as palavras, tentando criar pelo menos uma para cada entrada do léxico que definimos.

Retomando o inventário e as regras definidas até aqui para o Soz:

  • C = b m r z f p s
  • V = a e i o
  • S = f p s

Estruturas silábicas principais: V, CV, CV(C), CCV, CVCC, SV(C).

[fricativa] + r. Assim, há muitas palavras com fra, sra, zra.

[plosiva] + [fricativa] (apenas no fim de palavras): seria comum términos em -ps, -pf, -bz.

[m] nunca acontece no final de palavras: términos como -mam, -sam, -om não existiriam.

Com as palavras criadas, eu posso pensar uma gramática basiquíssima e tentar definir como é que esse idioma une sujeito e predicados. Ele aglutina? O adjetivo vem antes ou depois? Há hífens? Aqui caberia uma gramática imensa, mas vamos pensar em coisas simples.

Exemplos:

“Porto Velho”:

  • Zrabe Srema seria exatamente na ordem do português.
  • Srema Zrabe seria invertido, como no inglês.
  • Zrabesrema, Sremazrabe, Zrabe-srema, Srema-zrabe

“Cidade Alta”:

  • Oromebz Azasa
  • Azasa Oromebz
  • Oromebzazasa, Azasaoromebz

No último exemplo acima, você poderia pensar em regras de fusão. O que acontece quando uma palavra que termina em vogal se une a uma que começa com vogal? Azasaoromebz poderia se tornar Azasoromebz ou Azasaromebz, dependendo do que definir.

Uma coisa que pode te ajudar bastante para criar nomes mais complexos é fazer uma lista básica de preposições (de, sob, sobre etc.) e advérbios de lugar (perto, longe, junto etc).

Tenha em mente que seu idioma pode nem ter esses elementos (o que é meio difícil), e que as coisas possam ser inferidas a partir de contexto.

Exemplos do Soz:

“Floresta do Lago Bonito”

  • Eser re Fars Samza, Eser re Farsamza
  • Eser re Samza Fars, Eser re Samzafars
  • Fars Samza Eser (Lago Bonito Floresta, literalmente)

“Estrada (junto) do Rio Baixo”

  • Borz fre Sar Farzo, Borz fre Sarfarzo
  • Borz fre Farzo Sar, Borz fre Farzosar
  • Sar Farzo Borz (Rio Baixo Estrada, literalmente)

Esses são exemplos muito, muito rasteiros de como criar esses nomes. Você vai perceber que quando estiver inventando os seus, vai acabar desenvolvendo diversas regras e adaptações para as coisas fazerem sentido — e tudo bem, a ideia é essa! O importante é que você tenha em mente os parâmetros que está criando, e que tente segui-los de forma consistente. A menos, é claro, que haja exceções. E sempre há exceções.

Passo 5: Transformação dos Nomes

A criação de uma língua de toponímia termina no passo anterior. Esse aqui é um passo extra que envolve pensar um pouco em cultura, passagem do tempo e no que acontece quando línguas diferentes se encontram.

Há muitos processos diferentes para a transformação de nomes, mas vou falar brevemente de três deles:

  • Simplificação acontece quando as pessoas removem sons na hora de falar, ou mudam por sons mais simples, e o nome vai ficando mais curto e fácil de pronunciar — na Inglaterra temos Gloucestershire, que virou Gloucester (e cuja pronúncia é meio que /glóster/).
  • Contato com outro idioma faz um nome ser adaptado pelos novos falantes, geralmente transformando ele de acordo com outras regras fonéticas — ainda falando da Inglaterra, a antiga aldeia de Eburos Akon foi povoada por diversas culturas com línguas diferentes, que foram adaptando o nome de acordo: Eburos Akon > Eburakon > Eoforwic > Jórvík > Yerk > Yourke > York.
  • Elaboração é quando existem lugares diferentes com o mesmo nome, e outros termos são adicionados ao nome para diferenciá-lo dos demais. É o motivo de no Brasil ter tantas cidades cujo nome é terminado em “do Sul”, “do Norte” etc.: o fato de já existir homônimas.

Para exemplificar, vou usar um dos nomes que criamos acima: “Zrabe Srema”, que sabemos que significa “Porto Velho”. Em uma simplificação, os próprios habitantes do lugar (os que falam nosso idioma, o Soz) com o tempo poderiam “comer” os R, e transformar em Zabi Sema. Vamos imaginar que falantes de português se mudam para Zabi Sema e, com o tempo, o idioma original se perde. “Zabi Sema” ainda soa bem “portuguesa”, mas talvez os lusófonos comecem a achar mais confortável dizer e escrever Zabicema, e o nome é transformado devido ao contato.

Elaboração pode acontecer tanto no idioma antigo quanto no atual, então variações da cidade poderiam ser Abe Zrabe Srema, ou Nova Zabicema. Assim, o que poderia ser uma piada no idioma original se perde com a tradução: talvez os atuais habitantes de Nova Zabicema não façam ideia que o lugar agora se chama “novo porto velho”.

Sub-módulo quase-avançado: troca-troca de idiomas

Não ia adicionar esse nível de complexidade nesse texto, mas acho que pode ser interessante: um jeito relativamente simples de pensar na transformação de nomes por contato é a de tabelar os sons dos seus idiomas, comparando-os foneticamente e fazendo a interpretação/transformação quando necessário.

A tabela a seguir mostra alguns fonemas, e estou partindo da língua portuguesa como referência. Há muitos outros fonemas que você pode usar nos seus idiomas, mas vou partir do que é conhecido para facilitar. A primeira coluna mostra o fonema, a segunda um exemplo do português, e as demais mostram como aquele fonema é representado em Soz (o idioma que estamos inventando aqui) e em uma outra língua, o Gavagai, cuja fonética vou definir agora:

Como essa tabela funciona? As letras/fonemas destacadas são aquelas que existem naturalmente nos idiomas em questão. Aquelas que estão em itálico não existem naquela língua, então são usadas substituições que façam sentido dentro das regras daquele idioma. É como uma pessoa que não consegue fazer aquele som na língua materna “ouve” o som de outra língua, essencialmente — em inglês, por exemplo, temos os nomes Lloyd e Floyd. O segundo deriva do primeiro, só que o primeiro é um nome galês, e originalmente o LL é um som diferente: como se fosse /h/ e /l/ falados ao mesmo tempo (tecnicamente: [ɬ], uma fricativa lateral alveolar surda). Como os ingleses não conseguiam pronunciar esse som estranho, tacaram um F ali pra compensar, porque era o que entendiam.

Coloquei ali na tabela uma notação específica no [s], na coluna do Gavagai: s > sh (_e/i). Isso significa “/s/ se torna /sh/ quando estiver antes de e ou i”. Ou seja: “Salto”, em português, cuja transcrição fonética é [saw.tʊ], seria transformada em saoto por um falante de Soz, e em saawtu por um falante de Gavagai. Mas “sino”, em Gavagai, se tornaria shinu.

Tanto o Soz quanto o Gavagai são aqui exemplos bastante extremos para mostrar como essas transcrições podem acontecer. Por exemplo, eu imaginei ambos como idiomas sem vogais nasais, então qualquer transcrição deles perderia isso: “mão” seria lida como mao em Soz e maau em Gavagai.

Outros exemplos:

Note que “homem” em Soz poderia ser “omem”, mas definimos nas regras do idioma que m não ocorre no final de palavras. Assim, também poderia se tornar “omemi”, “omeme” etc, dependendo do nível de especificidade que você criar.

Aqui estamos entrando no campo da construção de línguas em si, mas uma nota: essa transformação de fonemas acontece tanto entre idiomas quanto entre dialetos de uma mesma língua, então é possível que seus personagens/povos que compartilham do mesmo idioma, mas que sejam de regiões distintas, pronunciem determinadas palavras de forma diversa.

Outra notinha sobre endônimos e exônimos

Já falei disso na introdução, mas vale a pena retomar: quando estiver pensando nas culturas do seu planeta, tente pensar como alguém imerso nelas. Os locais terão nomes nativos, endônimos (como Zrabe Srema). Quando uma outra cultura, que não pertence àquele lugar, fala dali, ela o batiza com outro nome, que pode ou não refletir o nome original de alguma forma. Assim, os lusófonos talvez chamem a cidade de Porto Velho mesmo, porque ali ainda há um porto velho muito famoso. Ou adaptam o original para Zabicema, usando fonemas e escrita do português. Pode acontecer até de chamarem de “Porto de Zabicema”, o que seria uma redundância justificável — nós mesmos temos “Saara”, do árabe, ṣaḥra’, que significa “deserto”: o Deserto do Deserto. De qualquer forma, ambos são exônimos, porque não são a forma usada pelos nativos. Isso acontece na realidade o tempo todo: para os endônimos Firenze, København e München, em português temos Florença, Copenhague e Munique.

Pensar em endônimos e exônimos é interessante por questões culturais, principalmente as que envolvem imperialismo e colonialismo. Isso fica visível quando o seu mundo tem um mapa, e os nomes que são apresentados nele refletem as preferências do autor que existe dentro da ficção.

Conclusão

A minha ideia era fazer um texto muito, muito menor. Resolvi não me segurar tanto porque nunca vi material assim em português, e acredito que possa ser aproveitado por muita gente. No fim das contas, as regras que mostrei aqui são as mesmas regras básicas para se criar idiomas inteiros, não apenas nomes — o que falta para fazer o serviço completo é pensar em gramática (entre outras mil coisas), algo que é bem mais complexo e envolve uma sistematização muito maior: pensar em verbos, advérbios, ordem de formação de frases, morfologia, semântica… enfim, isso fica pra outro dia.

Essa dificilmente vai ser a versão final desse texto aqui; sempre que possível vou atualizá-lo com mais exemplos, e aperfeiçoar a escrita onde for necessário. Quero muito que ele seja útil, então se tiver sugestões, sou todo ouvidos!