O que são?

Perguntas de aquecimento são questionamentos que o mestre do jogo faz para o grupo de jogadores, e que geralmente são respondidas na voz dos personagens. Algumas vão revelar detalhes do passado, relacionamentos que tiveram antes da vida de aventuras ou do envolvimento nos acontecimentos da campanha atual. Outras são relativas a questões internas, sentimentos, ambições, sonhos e desejos, ou mesmo a visão sobre os outros membros do grupo ao qual eles pertencem.

Para que servem?

Essas perguntas têm diversas aplicações práticas. A resposta mais simples é sobre a conexão que um jogador ou jogadora pode desenvolver com seu personagem, quando passa a criar sua personalidade, suas vivências passadas, sua forma de pensar e outras características pessoais. Com o tempo, com a dedicação dos jogadores em responder essas perguntas e com a atitude do mestre em estimular e dar espaço para essas narrativas pessoais durante as sessões, a interpretação dos personagens passa a ficar mais interessante, e eles naturalmente deixam de ser um punhado de números ou bolinhas pintadas em um papel impresso no modo econômico.

No meu grupo atual de D&D 5ª Edição, por exemplo, tenho jogadores que nunca haviam tido experiência com RPG até então, apenas com jogos de tabuleiro e um ou outro “RPG” eletrônico. Um desses jogadores, que vou chamar de João, passou dias lendo o Livro do Jogador, estudando o sistema e tirando dúvidas sobre regras específicas através de mensagens de texto madrugada adentro (um beijo, João!) para montar sua ficha da forma que lhe parecesse mais interessante, perdendo a chance de desenvolver seu personagem junto com os outros durante a primeira sessão. Ao longo das sessões de jogo, ele mesmo relatava que não sabia o que fazer ou como reagir às situações que eu colocava como desafio, mas não por desconhecer as regras ou possibilidades de ação, e sim por não saber como o Jaeru, seu personagem, realmente agiria. Durante as primeiras sessões, ele respondia às perguntas sem considerar que a ficha representava uma pessoa, e usava um certo tom meio debochado nas respostas. Com o tempo, porém, e observando as respostas dos outros jogadores, o João começou a entender a proposta do jogo (sim, eu fiz uma sessão zero no começo, mas não foi suficiente para ele, e hoje eu teria feito diferente) e desenvolver melhor a personalidade do seu aasimar bardo. Hoje, ao final das sessões de jogo (através de chamadas no Discord, devido ao isolamento social), ele geralmente é o jogador que mais fica conversando comigo sobre o personagem e como os acontecimentos da campanha podem ter impacto nele, e é um dos mais preocupados em agir de acordo com o que foi estabelecendo desde o começo do jogo. Inclusive ele se preocupa em incorporar no personagem aquela fase em que ele, jogador, estava meio desconectado e respondendo meio na brincadeira, e justificar a mudança de comportamento e mentalidade.

Outra função importante das perguntas é estimular a criação de ganchos de aventura e detalhes que o mestre pode utilizar na campanha para que a história que todos estão contando juntos se torne importante para cada um dos PJs. Mas isso deve ser feito com cuidado e algum nível de planejamento, evitando que o objetivo de cada pergunta seja óbvio.

Voltando ao meu grupo, uma das primeiras perguntas que fiz foi sobre um gosto peculiar que cada um dos personagens teriam. Um outro jogador, que vou chamar de Pedro, respondeu que seu ladino chamado Eban apreciava o cheiro de madeira recém cortada, por ter crescido em um vilarejo onde a atividade econômica principal era a extração de madeira e carpintaria. Essa resposta, além da informação direta sobre ele apreciar esse tipo de aroma, também me informa um pouquinho sobre o passado e presente dele, mostrando que ele ainda pode guardar certo carinho pelo seu local de nascimento, ou que pode conhecer um pouco sobre esse tipo de atividade, e que talvez fosse capaz de perceber que algum outro lugar realiza esse mesmo tipo de atividade ao perceber esse cheiro. Também é uma informação que me permite criar uma descrição específica, com a qual o personagem pode se conectar emocionalmente e, por consequência, o jogador pode acabar prestando mais atenção no jogo e se importar mais com o que está acontecendo.

Outra pergunta que eu fiz em uma das primeiras sessões da campanha, e que posso usar as respostas em diversos momentos dela, foi relativa aos piores medos e receios dos personagens. Se eu tivesse feito essa pergunta no início de uma sessão onde eles enfrentariam uma criatura que utilizasse essa informação contra eles, toda a situação poderia ficar forçada. O mais legal, porém, é manter registro dessas respostas e usar conforme a necessidade. Por exemplo, em um pesadelo induzido por uma bruxa, onde o personagem pode vivenciar uma situação que remete ao medo que ele descreveu semanas atrás (e com sorte até já esqueceu que respondeu essa pergunta), tornando a experiência mais personalizada.

O fato é que essas perguntas, ao mesmo tempo em que permitem aos jogadores uma maior conexão com seus personagens, me permitem coletar informações específicas que eu posso usar no desenvolvimento da campanha, trazendo personagens mencionados nas respostas deles para interagir ou personalizar elementos narrativos que antes poderiam acabar soando meio genéricos.

Vamos dar uma olhadinha no texto descritivo da magia assassino fantasmagórico, da página 216 do Player’s Handbook – Livro do Jogador:

“Você se conecta aos pesadelos de uma criatura à sua vista e dentro do alcance da magia. A criatura é assolada por uma manifestação ilusória dos próprios medos mais profundos, visível apenas para ela. O alvo deve fazer uma salvaguarda de Sabedoria. Se falhar, fica amedrontado enquanto a magia durar. No final de cada turno do alvo, enquanto a magia durar, ele deve fazer uma salvaguarda de Sabedoria. Se falhar, sofre 4d10 pontos de dano psíquico; se for bem-sucedido, a magia termina.”

Quando você usa isso contra um personagem jogador, o que é mais interessante: dizer que ele, ao falhar numa salvaguarda de Sabedoria, sente um medo profundo que toma sua mente e causa 4d10 pontos de dano psíquico; ou descrever como ele tem vislumbres do momento em que seus companheiros caíram um a um enquanto ele, impotente e paralisado de medo, não conseguiu fazer nada para impedir suas mortes (usando a informação de uma resposta onde ele diz que o grupo de aventureiros é sua nova família e onde ele se sente mais confortável para ser ele mesmo) e só então rolar os quatro dados de dano psíquico?

Eu acredito que um jogo de RPG propicia momentos memoráveis, e essa é uma forma de todos construírem juntos esses momentos.

Quando usar?

Como o próprio nome diz, estas perguntas devem ser usadas como aquecimento, logo antes de cada sessão de jogo começar.

Quando jogávamos presencialmente, eu gostava de fazer essa pergunta quando a mesa já estava arrumada e todos os jogadores já tinham sua ficha em mãos. Costumava chamar a atenção de todos, dizer a pergunta em voz alta e pedir que cada um respondesse na voz do personagem. Algumas perguntas, que eu não queria que todos soubessem as respostas dos outros, eu fazia em voz alta e entregava pedaços de papel para que as respondessem por escrito. Hoje, jogando de forma remota, coloquei todas as respostas antigas em um arquivo no Google Drive, onde deixo as perguntas de cada nova sessão para serem respondidas no início do jogo. As perguntas pessoais, cujas respostas são secretas, peço para eles me responderem por mensagens privadas no Telegram (mil vezes melhor que Whatsapp).

Matriz de relações interpessoais

Recentemente fizemos uma tentativa OUSADA de começar uma segunda campanha de RPG paralela a de D&D durante a semana, usando o jogo brasileiro Arquivos Paranormais, que tem algumas ferramentas de criação colaborativa de cenário de campanha e personagens bastante interessantes, e possivelmente o Bruno vai acabar falando mais sobre isso em algum artigo.

Uma dessas ferramentas é basicamente um quadro ou matriz onde cada personagem diz uma opinião sobre um de seus companheiros. No Arquivos Paranormais, essas respostas estabelecem algumas verdades sobre os personagens que depois são traduzidas em mecânicas do jogo, mas o pessoal gostou tanto de preencher essa tabela (diversões exóticas da quarentena) que me pediram para fazer uma igual no D&D, como uma das perguntas de aquecimento.

O modelinho da matriz fica mais ou menos assim, considerando 4 jogadores:

O uso dessa ferramenta é bem interessante porque permite a cada jogador expressar sua opinião sobre os personagens dos colegas enquanto escreve na voz do seu próprio personagem. Também permite ao mestre entender a dinâmica dentro do grupo de forma a extrair algumas informações que podem ser interessantes, como quem parece ser o personagem mais querido ou mais deslocado, quem desconfia de quem, e assim por diante, e usá-las para criar e estimular conflitos interpessoais. Afinal, toda história interessante precisa de conflitos interessantes (lembrando que conflitos não precisam ser brigas entre os personagens).

Uma diferença importante é que no Arquivos Paranormais, essa matriz é feita ANTES do jogo propriamente dito começar, sendo parte importante da sessão zero. Eu a utilizei no meio de uma campanha de D&D em andamento, então muitas das opiniões dos personagens se baseiam em acontecimentos anteriores aos da sessão em que ela foi aplicada, e servem como termômetro das ações e reações de cada um deles.

Alguns exemplos de perguntas que você pode usar

Aqui está uma lista com algumas perguntas que eu já usei, algumas que eu pretendo usar e outras que fui coletando ao conversar com com outras mestras e mestres e vasculhando a rede mundial de computadores. Elas são direcionadas aos personagens, não aos jogadores.

  • Se você não fosse um aventureiro, que estilo de vida gostaria de levar?
  • Qual seu principal objetivo, resumido em uma frase curta?
  • Conte um arrependimento que você guarda.
  • Tem algo em que você está tentando se aprimorar?
  • Fale sobre um momento em que você se sentiu muito vulnerável.
  • Todo mundo tem um gosto peculiar, qual o seu?
  • Descreva uma tarde agradável.
  • Já disse “eu te amo” para alguém?
  • Teve algum rival na infância/juventude?
  • Qual o seu maior medo?
  • O que realmente abala a sua confiança?
  • Diga três coisas que você se considera muito bom.
  • Diga três coisas que você se considera muito ruim.
  • Quais são os seus preconceitos?
  • O que faz você se sentir seguro?
  • Você pretende se aposentar, constituir família e levar uma vida tranquila?
  • Que animal te representa melhor?
  • Quais suas esperanças para a vida após a morte?
  • Você tem alguma cicatriz perceptível? Qual a história dela?
  • Qual seu feito mais memorável?
  • O que é mais importante? Saúde, riqueza ou felicidade?
  • Você se considera importante para seus companheiros? Por que?
  • Qual a sua melhor característica?
  • Qual a sua pior característica?
  • Se pudesse dar um conselho para uma versão sua mais jovem, qual seria?
  • Por que você anda com essas pessoas?
  • Quais suas atividades preferidas em momentos de descanso e lazer?
  • Você se enxerga como algum estereótipo nesse grupo (a Mãezona, o Alívio Cômico, o Encrenqueiro, etc.)
  • Descreva o seu cheiro.
  • Sobre qual aspecto do futuro você tem mais curiosidade?
  • Qual a sua comida preferida?

Exemplos de perguntas secretas

  • Em uma situação de emergência em que você só pudesse resgatar um de seus companheiros, quem seria sua prioridade?
  • Na sua opinião, qual outro membro é o mais importante para o grupo?
  • Você se sente atraído física ou romanticamente por algum companheiro?
  • Como você se sente, atualmente, sobre seu grupo?
  • Você tem algum segredo constrangedor ou comprometedor?

Assim, com essa pequena lista você já deve ter uma boa base para criar as suas próprias perguntas, que vão se adequar melhor a personalidade dos seus jogadores, a forma como vocês gostam de conduzir uma campanha, e para coletar informações específicas que você possa querer usar no desenrolar dos acontecimentos no seu jogo.

E vocês, usam alguma ferramenta para aprofundar a relação dos seus jogadores com os personagens e o cenário? Já utilizaram perguntas de aquecimento para alguma outra finalidade que não foi explorada aqui?