Quando eu era criança, no final do século passado, tive a chance de entrar em contato com duas coisas que viriam a se tornar muito presentes pelo resto da minha vida. A primeira delas foi o conjunto básico do AD&D chamado First Quest – A Primeira Missão, publicado aqui no Brasil pela editora Abril em 1995 e que meu pai me deu de aniversário no ano seguinte. Durante uns bons anos, aqueles livretos, fichas e dados representaram todo o contato que eu tinha com RPG. A segunda dessas coisas, que surgiu mais ou menos na mesma época, foi o jogo eletrônico Diablo (que saiu em 31 de dezembro de 1996) e que eu me lembro de ter tido o primeiro contato através de uma versão demo (insira aqui uma piadinha óbvia) que veio em uma Revista do CD-ROM. Nessa época, cd-rom era uma febre, e essa revista trazia muitos softwares gratuitos e versões demos de utilitários e utilitários, músicas de acesso gratuito, papéis de parede e outras coisas que um pequeno garoto poderia desejar instalar em seu computador.

Mas por que eu estou falando disso? D&D e Diablo (em todas suas iterações) devem ser os dois jogos que eu mais joguei até hoje, e eu adorava tanto aquela pegada de fantasia mais suja e sombria do jogo eletrônico quanto a versão mais colorida e otimista do RPG de papel (saudades, Karameikos). Então eu tentava puxar para o jogo analógico algumas das coisas legais que eu via no eletrônico, já que o contrário não era possível.

Um dos elementos tradicionais de todos os jogos da série Diablo até hoje, são os shrines, que eu vou traduzir como Santuários. São construções que você encontra enquanto explora o cenário (masmorras ou lugares abertos, nos títulos seguintes) e que produzem, uma única vez, um efeito sobre o personagem ou sobre o ambiente quando você interage com ele. Até hoje, no título mais recente da série, quando você para o cursor do mouse sobre uma dessas estruturas é possível ver o nome do santuário, que dá uma dica sobre o efeito que ele gera. Na época eu tinha uns 9 ou 10 anos, e não sabia nada de nada de inglês, então cada uma daquelas coisinhas clicáveis era uma caixinha de surpresas.

Tá, nostálgico. Mas por que eu também falei de First Quest?

Quando eu estava pensando em trazer a ideia desses santuários para as sessões de RPG, eu acabei lembrando que na primeira aventura do Livro de Aventuras do conjunto, chamada “A Tumba de Demara” (que eu tenho praticamente decorada até hoje, de tanto que eu mestrei para vários amigos diferentes), havia um altar em uma das salas que era guardado por um homem-lagarto xamã. O texto descritivo detalhava o altar como um bloco de pedra cujas inscrições na base estavam reduzidas a meros arranhões, mas que ainda era capaz de inspirar paz e força. Logo depois, as informações da aventura para o mestre diziam que esse altar ainda era um lugar sagrado, e que o primeiro personagem ferido a tocá-lo teria suas feridas completamente curadas. Mas apenas o primeiro a tocá-lo receberia esse efeito.

Caramba, esse comportamento é típico dos santuários de Diablo.

Então, como trazer esse tipo de coisa para o seu jogo, em uma variedade ampla de efeitos mágicos?

A meu ver, uma solução interessante poderia ser associar essas estruturas a magias de círculos mais baixos e efeitos similares. Aproveitando a palavra santuário e a grande variedade de deuses em vários dos cenários de campanha de D&D, também poderia ser interessante associá-las a essas divindades.

Então pensei em estabelecer algumas características que fossem compartilhadas pelos santuários, para servirem como linhas guia.

Santuários

Santuários são estruturas erigidas e dedicadas a uma divindade específica. A CD do teste de Inteligência (Religião) para identificar a divindade pode variar entre 10 e 20, dependendo do tamanho de seu culto. Portanto, santuários de divindades maiores e mais conhecidas geralmente têm CD 10, os dedicados a divindades menores têm CD 15, e os raros santuários dedicados a entidades esquecidas ou alienígenas têm CD 20. Um sucesso no teste dá indícios sobre qual divindade é homenageada pela estrutura. Esses indícios podem ser um símbolo sagrado ou uma frase entalhada que revele características da divindade. Personagens que sejam clérigos da divindade em questão reconhecem automaticamente e sabem ativar o santuário sem precisar testar a perícia.

Um santuário perdido de Helm.

Santuários normalmente são erguidos em lugares que representem alguma característica de sua divindade, ou que sejam considerados importantes para seu culto. Alguns deles, porém, são muito antigos e estão em lugares que não representam mais essas características. Por isso, você pode acabar se deparando com um santuário de Mielikki, a deusa das florestas do panteão de Faerûn, no meio de um pântano que pode ter sido um bosque destruído por um dos inúmeros eventos mágicos que afetaram o cenário ao longo dos anos.

Gosto de considerar essas estruturas como ruínas que contém alguma energia sagrada residual, que será descarregada assim que alguém interagir da maneira adequada. Um santuário de Lathander, um deus solar, pode emitir uma luz quente e agradável quando ativado com as palavras corretas, e se manter iluminado por algum tempo antes de apagar para sempre. Um dedicado a Ilmater, deus da resistência, pode curar as feridas de um aventureiro ferido, enquanto um de Malar, deus da caça, pode conferir vantagem nos testes de Sabedoria (Percepção) relativos aos sentidos da visão e do olfato por algumas horas ao personagem que o ativar.

Todas as divindades, não importa o alinhamento, podem ter santuários dedicados a elas. Uma comunidade no extremo norte da Costa da Espada pode construir um para Auril, deusa do inverno, ansiando que ela recompense a devoção ao enviar uma estação menos rigorosa. Ou um santuário a Chauntea, divindade da agricultura, pode ser construído perto de um oásis em uma região deserta, para favorecer o cultivo de plantas por uma comunidade local.

Gosto de pensar que os santuários que ainda reúnem devotos a seu redor não são capazes de gerar esses efeitos mágicos mencionados anteriormente, já que servem como canal constante para as energias da divindade e da fé de seus devotos. Já os santuários antigos e esquecidos podem gerar esses efeitos, uma vez que a energia divina residual neles não é canalizada para nenhuma finalidade específica há anos.

Vou deixar alguns exemplos aqui, que vocês podem utilizar no jogo ou como referência. Cada um deles tem sugestões de locais onde podem ser encontrados, a dificuldade do teste de Inteligência (Religião), sugestões de inscrições e símbolos baseados nas personalidades das divindades representadas, uma forma de ativação e o efeito gerado. Tudo que está descrito pode ser alterado, e você deve estimular os jogadores a buscarem formas diferentes e criativas de ativar um desses santuários. Evite resolver tudo com rolagem de dados, faça com que eles conversem entre si e discutam possíveis soluções que pareçam coerentes com a situação.

Santuário de Tempus, deus da guerra

Possível localização: fortificações militares em ruínas ou antigos campos de batalha.

Teste para identificar: Inteligência (Religião) CD 10.

Inscrição: “A lâmina de um verdadeiro guerreiro está sempre pronta e afiada”.

Símbolo: A espada flamejante de Tempus, ou algo que siga o mesmo estilo bélico.

Ativação: O personagem que deseja ativar o santuário deve erguer sua arma, tal qual a espada flamejante de Tempus, acima de sua cabeça e emitir um brado enérgico.

Efeito: O personagem que ativou o santuário recebe um bônus de +2 nas jogadas de iniciativa, e bônus de +2 nas rolagens de dano até o próximo crepúsculo, mas não pode ser afetado por magias de cura durante o mesmo período.

Santuário de Helm, deus da proteção

Possível localização: fortificações militares em ruínas.

Teste para identificar: Inteligência (Religião) CD 10.

Inscrição: “O protetor vigilante sempre espera e observa atentamente”.

Símbolo: Uma manopla desgastada, com um baixo relevo quase circular no meio (onde estaria o olho vigilante de Helm).

Ativação: O personagem que deseja ativar o santuário deve fazer uma oração a Helm.

Efeito: Vantagem em testes de Sabedoria (Percepção) até o próximo crepúsculo. Ao final do efeito, ele sofre um nível de Exaustão.

Santuário de Savras, deus da adivinhação e do destino

Possível localização: bifurcações em estradas antigas, picos de montanhas onde as estrelas possam ser bem observadas.

Teste para identificar: Inteligência (Religião) CD 15.

Inscrição: “Sua própria existência deforma a realidade. Exista com consciência”.

Símbolo: Um olho negro com a pupila branca ou prateada em formato de estrela

Ativação: Um simples toque ativa o santuário.

Efeito: O personagem que ativou o santuário recebe uma visão premonitória, que pode ou não se realizar. Essa visão pode ser sobre um lugar, uma pessoa, um objeto ou um acontecimento. Logo depois, o personagem deve fazer uma salvaguarda de Constituição com CD 15, ou ficar em um estado febril, com efeito similar ao primeiro nível de Exaustão, até realizar um descanso curto.

Santuário de Mystra, deusa da magia

Possível localização: Círculos de pedras em clareiras dentro de florestas ou no topo de colinas, cavernas cristalinas, lugares alterados magicamente.

Teste para identificar: Inteligência (Religião) CD 15. Apesar de ser uma divindade maior, sua igreja é envolta em mistérios.

Inscrição: “O conhecimento é o única caminho para se manipular verdadeiramente a Trama”.

Símbolo: Uma única estrela prateada. Por considerar os santuários como estruturas muito antigas, optei por utilizar o símbolo da Mystra antiga, que morreu durante o Tempo das Perturbações e voltou no corpo de uma de suas Escolhidas.

Ativação: Meditar durante 10 minutos em contato com o santuário.

Efeito: O personagem que ativou recupera um número de espaços de magia cujos círculos combinados sejam iguais a um quarto do seu nível, arredondados para cima, ao custo de remover a mesma quantidade de magias da sua lista de magias preparadas até o próximo descanso longo (no mínimo 1). Por exemplo, um mago de 8º nível poderia recuperar uma combinação de dois círculos de magia, sendo dois espaços de 1º  círculo ou um espaço de 2º círculo, removendo duas magias de sua lista de magias preparadas.

Santuário de Torm, deus da coragem e do autossacrifício

Possível localização: Fortalezas em ruínas, túmulos de heróis de guerra.

Teste para identificar: Inteligência (Religião) CD 20. Torm é uma divindade menor em Faerûn, e seu culto, embora crescente, ainda é pequeno quando comparado aos de outras divindades guerreiras.

Inscrição: “Um líder exemplar se preocupa mais com seus aliados do que consigo”.

Símbolo: Uma manopla direita, branca ou prateada

Ativação: O personagem que deseja ativar o santuário deve sacrificar parte da sua energia, abrindo mão de sua própria força vital para fortalecer seus companheiros.

Efeito: Cada aliado do personagem que esteja a até 9 metros do santuário recebe o efeito da magia benção (não cumulativo com outros usos da mesma magia). O personagem que ativou o santuário não recebe o benefício e, pelo mesmo sofre uma redução temporária em seus PVs máximos igual a Xd4+X, sendo X o número de aliados na área de efeito. Ambos os efeitos duram até a próxima vez que o sol passar pela linha do horizonte.

Inicialmente, quando estava pensando em como traduzir mecanicamente esse conceito dos santuários, eu tinha criado alguns que causavam apenas efeitos positivos nos personagens. Durante o processo de desenvolvimento, comecei a achar interessante que eles causassem um efeito positivo e um negativo, de modo que os jogadores e jogadoras tivessem que pesar os prós e contras de cada um que conseguissem identificar. Desta forma, mesmo os santuários de divindades malignas ou de alinhamento muito diferente do de um personagem poderia oferecer uma recompensa interessante.

Imagino que os deuses não ficariam muito felizes em ver seus clérigos ativando santuários de outras divindades que não fosse suas aliadas ou que pelo menos compartilhem dos  seus ideais. Nesses casos, imagino que o clérigo possa gastar um de seus usos de Canalizar Divindade para ativar um santuário de uma divindade não aliada da sua, e simplesmente não ser capaz de ativar santuários de divindades inimigas. Um clérigo de Mystra, por exemplo, seria incapaz de ativar um altar de Cyric.

Sacerdotes dedicados podem até mesmo querer destruir santuários de divindades opostas à sua fé, mesmo que desta forma acabem atraindo atenção para si. Nesse caso, você pode considerar que seja necessário sucesso em dois testes de Força (Atletismo) com CD entre 10 e 20 (essas estruturas normalmente são bastante resistentes, principalmente se as considerarmos muito antigas e ainda de pé) para derrubar ou destruí-las. Formas alternativas de inutilizar um desses santuários podem ser sugeridas pelos jogadores e ideias criativas podem ser recompensadas com Inspiração. Por exemplo, um santuário com um receptáculo de pedra, como uma ânfora ou espelho d’água pode ter esse reservatório inutilizado de alguma forma, seja sendo talhado com o uso de ferramentas adequadas ou até mesmo cimentado. Normalmente eu evitaria pedir testes para isso, e deixaria a cargo da interpretação. Mas, se sentir que o pessoal está travado, você pode pedir um novo teste de Inteligência (Religião) com CD igual ao teste de identificação, ou um pouco maior. Outra alternativa é fornecer mais detalhes a cada teste de Inteligência (Investigação) que seja bem-sucedido. Uma estrutura que seja ativada simplesmente pelo toque pode se ativar dessa forma, então personagens que a tenham investigado e compreendido seu funcionamento devem levar isso em conta.

Como mestre, você pode e deve pensar em formas diferentes de usar essas tentações e limitações na interação com as estruturas, e criar as suas próprias seguindo esses exemplos.

Acredito que essas estruturas, quando usadas corretamente e numa frequência não muito alta, possam aprimorar as descrições das paisagens trazendo mais personalidade para suas localidades e aumentando a sensação de exploração, um dos três pilares de uma boa aventura de Dungeons & Dragons. Elas também podem fazer com que os jogadores e jogadoras se interessem ainda mais pelo cenário que você estiver utilizando, seja um título comercial ou de sua própria criação, e logo você pode se ver tendo que detalhar um pouco mais as tradições de uma das religiões do mundo para os que forem mais curiosos e empolgados.

Se você utilizar com o seu grupo, me conte como foi. Se fizer alguma modificação ou criar novos exemplos, ou mesmo se já adaptou o conceito de forma diferente, tenho interesse em conhecer alternativas e trocar ideias sobre isso!

Até a próxima!


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