Eliseu Visconti - 1892 - Baronesa de Guararema.

As batidas do monjolo marcavam o tempo que resistia em passar, naqueles dias modorrentos de janeiro. A velha, sozinha, bordava em sua cadeira, acompanhando os murmúrios do moinho na água e os baques da madeira nos grãos. Seu casebre, perto de uma das colunas das grandes construções, só não era esquecido naquela imensidão pois ficava na beira da estrada, e muitos batiam à sua porta pedindo ora informação, ora conselhos, ambos servidos com café.

Baque. Ela já havia se acostumado, ainda que fosse por vezes tomada pela tristeza, contagiada pelos que passavam por ali. À noite, as pancadas conduziam o passar das horas, que durante o dia era medido pela luz do sol que refletia nos muitos vidros coloridos, espalhados pela casa.

As pontes impossivelmente altas cruzavam os ares, as longas colunas de suas fundações perfurando a terra e se elevando como enormes espinhas de peixe. Todos os caminhos que cortavam o céu, ignorantes da cabana da velha a seus pés, encontravam-se no topo daquele morro de pedra, lá longe, onde ficava a mais alta das cidades. Suas muralhas cor de cobre, encarapitadas umas sobre as outras, eram da mesma cor dos parapeitos que voavam sobre o vale.

Fora algum ancestral da mulher que, desistindo da vida naquela cidade triste e distante, havia limpado e cercado aquele pedaço de terra. Talvez o mesmo antepassado tenha feito o engenho e o monjolo que estalava, transformando milho em farinha.

Outra pancada. Era aquele som que a mantinha sem medo, mesmo vivendo sozinha, enquanto via as pessoas caminhando lá no alto. Não sabia mais quanto tempo lhe restava, e mesmo tendo saído poucas vezes da sua casinha, não se arrependia da vida que tivera. Era tranquila. Solitária, mas tranquila. Talvez isso ajudasse os que vinham em busca de seu conselho.

Os mercadores e viajantes, que entravam e saíam da cidade, faziam muitos caminhos pelas pontes altas, por escadas que desciam as colunas enormes, por estradas de tijolo e terra que costuravam o vale verde como uma grande colcha. As batidas à porta da velha somavam-se às dos fundos da casa.

Da cidade distante só tinha uma memória ainda mais longínqua, de quando era menina e visitara uma casa de vidros com a mãe. Frascos, vasos de flor cristalinos. A memória era triste, e foi sempre assim que se lembrou daquele lugar e daquelas pessoas.

Naqueles dias de verão era mais comum baterem à sua porta, quase todos os dias. Homens e mulheres, oficiais de alta patente, mães, pais, irmãos e irmãs. Filhos e filhas. Choravam. Ela servia café e os acalentava, iluminada pelos vidros da mãe.

Lá fora, outra batida.

Pela janela de sua cozinha, conseguia ver os telhados vermelhos da cidade, lá longe. As árvores frondosas, com suas folhas e flores cor de sangue, as pétalas carregadas pelo vento até o fundo do vale. Também via uma ou duas pontes, mas não a que fora construída sobre o seu teto. Não o parapeito de onde saltavam para a morte em seu quintal.


Fins de janeiro é uma história curta que escrevi no começo de 2017, motivado pelo I Concurso de Ficção Relâmpago do podcast Curta Ficção. Acho que foi a primeira vez em que coloquei alguma coisa de Tiriana na internet, mesmo sem ter nada específico que remeta ao cenário em si.

Tiriana é um projeto que venho desenvolvendo ativamente desde janeiro de 2017: um mundo de fantasia inspirado em culturas brasileiras. Desde o concurso, o cenário mudou bastante, ganhou mais corpo e tomou rumos que eu não esperava. Aqui no Encontros Aleatórios eu vou apresentar o desenvolvimento dessa história toda, discutindo fantasia, folclore brasileiro, mitologias indígenas, literatura, músicas da Clara Nunes e como andei juntando tudo isso usando RPG como desculpa.


A imagem que ilustra o post é um detalhe da pintura Baronesa de Guararema, de Eliseu Visconti. Um retrato a óleo da madrinha do pintor, Francisca Monteiro de Barros, feito em 1892.