O que é perdido quando uma língua morre? Arte de Jill De Haan.

Este é um jogo sobre idiomas.

O que acontece quando uma língua é perdida? O mundo dá mais um passo em direção à mesmice, e perdemos mais uma faceta da humanidade. Isso pode parecer inevitável à medida em que nos atiramos de cabeça na singularidade, mas está longe disso. Para que possamos lutar contra esse futuro, primeiro temos que lutar para entendê-lo.

Este é um jogo sobre idiomas e como eles morrem.

Em 26 de outubro de 2016, o financiamento de um jogo narrativo independente foi lançado no Kickstarter: Dialect: A Game about Language and How it Dies. A sinopse que vendia a proposta é a mesma até hoje: “Construa uma língua, construa um mundo. Quem eram os Isolados, e como eles se perderam? Neste jogo, seu idioma é a história”.

Em novembro do mesmo ano, chegava aos cinemas A Chegada (Arrival), um filme sobre como uma linguista é a única ponte entre a humanidade e uma raça de alienígenas misteriosa, em que toda a trama gira em torno dos problemas de comunicação entre os povos. O longa, uma adaptação da novela História da sua vida (1999), de Ted Chiang, toma bastante liberdades poéticas em relação ao material original, mas a filosofia central permanece: se você soubesse o que vai acontecer no futuro, ainda assim poderia impedi-lo? Usando uma história extremamente pessoal, o enredo trata de determinismo e livre-arbítrio, e tem a questão linguística como peça-chave para o seu desenrolar: conforme Louise Banks aprende o idioma dos heptápodes, aprende a ver o mundo – e a entender a sua própria realidade – de maneira completamente diferente.

Amy Adams como Louise Banks em A Chegada. Jan Thijs/Paramount.

A Thorny Games, editora de Dialect, é a definição de indie: formada por um casal, suas metades são Kathryn Hymes, uma matemática e linguista, e Hakan Seyalıoğlu, um criptógrafo (e eu queria muito ser a terceira pessoa desse casal). Ambos desenvolvem jogos narrativos em que a comunicação e a construção de linguagens é o centro das atenções. Inspirados por História da sua vida, ambos vêm desenvolvendo desde aquela época um jogo, Xenolanguage, baseado na obra de Chiang. Antes de terminá-lo, no entanto, lançaram Dialect.

Dialect é um jogo narrativo, não sendo exatamente um RPG. O objetivo dos jogadores é contar uma história sobre uma comunidade que vive em algum tipo de isolamento, seja ele físico, social ou de algum outro tipo. Tudo o que acontece com esse grupo de pessoas, no entanto, é estabelecido através do dialeto que nasce nessa nova sociedade: palavras passam a ter significados diferentes, expressões e gírias surgem, e brotam conceitos que só fazem sentido para os isolados. Todos interpretam um único personagem, ainda que um jogador seja o Facilitador, uma espécie de narrador que ajuda a manter as coisas funcionando.

A questão é que, desde o começo, os jogadores sabem que a comunidade vai deixar de existir. Os ecos com História de sua vida são evidentes: mesmo sabendo o que ocorre no futuro, o que podemos fazer no presente?

A estrutura do jogo é relativamente simples. O livro tem diversos cenários pré-definidos para que os isolamentos sejam criados, e um guia de como criar seus próprios cenários. Todos eles existem em forma de esqueleto, uma série de propostas em forma de perguntas, visto que em cada sessão os jogadores podem criar coisas completamente diferentes. Na primeira vez que jogamos, escolhemos um dos cenários introdutórios: uma comunidade de 2000 exploradores espaciais, enviados a Marte, e que está a cinco anos sem comunicação com a Terra.

Essencialmente, o cenário é esse. A criação da comunidade em si é a parte mais longa da sessão, e é uma experiência muito singular: cada jogador responde a uma pergunta (do tipo “Por que a comunicação caiu?” ou “Qual a parte mais difícil de viver em Marte?”) e a resposta dela se torna uma verdade. O jogo usa uma mecânica de Aspectos (que lembra bastante o Fate), em que a comunidade tem três frases que a definem, e tudo o que é criado até o final deve remeter a esses aspectos de alguma forma.

Personagens em Dialect sempre têm alguma espécie de título ou apelido, pelo qual são mais conhecidos.

Após a comunidade ser criada, cada jogador cria para si um personagem. É nesse momento que entra em cena outra mecânica: Dialect tem três baralhos. Um chamado Voz, com arquétipos de personagens, outro chamado Linguagem, com elementos que devem ser criados no curso de jogo, e um último chamado Legado, com as cartas que terminam a história.

Ao receber seus arquétipos, o jogador deve escolher apenas um. Esta carta tem instruções mínimas sobre como aquele personagem deve se relacionar com os aspectos do jogo, bem como com os outros jogadores. Quando jogamos por aqui, eu escolhi Oráculo. Isso significa que as pessoas me procuravam sempre que precisavam de algum tipo de previsão. Em relação ao cenário, o oráculo se identifica com dois aspectos, sendo que um deles, ele acredita, será a ruína da comunidade.

O jogo acontece em três rodadas, chamadas de Eras. Cada cenário traz perguntas que devem ser respondidas na transição dessas Eras, mostrando como a comunidade se transforma. Em cada Era, os turnos do jogadores seguem uma estrutura bem específica: usar uma carta de Linguagem, atrelá-la a um aspecto e criar, a partir dela, um item linguístico. Com a história que havíamos estabelecido, Vida no subterrâneo era um dos aspectos. No meu turno, usei a carta Preocupação e defini que a nossa comunidade tinha diversos rádios e caixas de som espalhadas por um complexo de túneis, e que às vezes apareciam interferências sonoras estranhas, que deixavam todos preocupados, porque poderia ser um sinal de que a Terra estava tentando restabelecer contato. Assim, chiado tornou-se sinônimo de preocupação.

A cada mudança de Era, um dos aspectos se transforma, refletindo as mudanças da comunidade.

Depois de criar seu item linguístico, o jogador escolhe quem participa de uma conversa. Essa conversa deve envolver os personagens, e os participantes devem usar a palavra nova num contexto em que ela faça sentido.

A história continua até todos terem criado diversas palavras, frases e expressões que só fazem sentido dentro daquela comunidade. No final da terceira Era, os jogadores decidem o que aconteceu para que tudo desse errado (ou certo!) de alguma forma, e a situação do Isolamento terminasse.

Cabe dizer aqui que uma das inspirações de Dialect é o jogo narrativo de cartografia The Quiet Year – o Leo escreveu uma resenha sobre ele, e você pode ler aqui.

Dialect não tem (pelo menos ainda) um “modo de campanha”. A ideia é que cada história termine numa única sessão, de três a quatro horas de duração – ainda que, no nosso caso, por nunca termos jogado e não estarmos familiarizados com as regras, acabamos estendendo para mais dias.

Pausa para mostrar a lindeza que é a configuração do Quadro Linguístico (Language Tableau), o tabuleiro que organiza o jogo:

https://www.instagram.com/p/Be54t5cjOdP/

A versão impressa acabou atrasando bastante – inicialmente sairia em julho de 2017, mas acabou chegando em agosto de 2018, ainda que o PDF tenha sido enviado em março deste ano. O texto é uma das coisas mais cuidadosas que eu já vi para um manual de jogo: desde o começo fala sobre como os jogadores devem se sentir confortáveis, aponta estratégias para acolhimento e recepção e dá diversos toques para se lidar com temas ásperos.

O livro final, em formato A5, tem 161 páginas. Dessas, pouco mais de 50 são de regras, e ainda assim, poderiam ser enxutas para caber em duas folhas. Os autores colocam muitos – muitos! – exemplos de jogo, o que facilita muito o entendimento dessa abstração toda. Dois terços do livro são completados com cenários pré-definidos, dos autores, bem como de escritores convidados – dentre eles, um capítulo sobre criação de palavras para o jogo, escrito por David J. Peterson (hoje conhecido por ter criado as línguas vistas em Game of Thrones, Penny Dreadful, Bright, entre outros).

Dialect é um jogo único. Quando resolvi financiar, ainda em 2016, fiz isso por acreditar no projeto, e no potencial que tudo aquilo tinha. Na época, ficava imaginando se um dia conseguiria juntar um grupo de jogadores que se interessassem nesse tipo de coisa, mas no fim das contas, meus temores foram injustificados, e ser um aficionado por idiomas não é pré-requisito pra aproveitar a experiência singular que a Thorny Games conseguiu projetar.

Não há sinais de Dialect vir ao Brasil. A versão em inglês custa US$ 29, e inclui o PDF do livro e das cartas com download imediato, disponível no site da editora.