Figuras na praia, de Carybé (1955). Quase toda pintura dele poderia ser uma paisagem de Tiriana.

Entre 2014 e 2015, eu tive a oportunidade única de participar do programa Ciência sem Fronteiras, e fiquei dez meses na Irlanda, num curso de aderecismo – a produção de bonecos, acessórios, réplicas e objetos para teatro, cinema e televisão. Os famosos props, que descobri que em português são chamados simplesmente de adereços. Quando eu terminasse as aulas por lá, voltaria pro Brasil para terminar minha graduação em Design de Produto e seguir a vida.

Nos últimos meses do outro lado do oceano, eu sempre pensava em como seria o meu trabalho de conclusão de curso aqui, e queria fazer algo que simbolizasse a união dos brasileiros com os irlandeses, e minha primeira ideia foi a de projetar figurinos e adereços para um espetáculo (fictício) que misturasse mitos do Brasil e da Irlanda. No começo, eu pensava em criar personagens que unissem características de orixás e dos sídhe celtas, na figura dos Tuatha Dé Danann.

O primeiro desenho que eu fiz, pensando numa alegoria mista de Boitatá com Crom Cruach. 15 de maio de 2015. Séculos atrás.

No meio das pesquisas, fui tentando afunilar, procurando mitos em comum com as duas culturas, partindo dos povos originários (nesse ponto eu já havia mudado de orixás para figuras indígenas). Foi quando eu encontrei o mito guarani de Yvy Marã E’ỹ – literalmente, Terra Imperecível – mais conhecida como a Terra Sem Mal: um paraíso que ficaria além do litoral brasileiro, uma ilha sagrada onde viveriam os abençoados em meio às divindades e aos espíritos ancestrais.

É meio maluco, porque muito antes de conhecer um mito guarani, dum povo antepassado daqui, eu conhecia o mito celta de Hy Brasil, a Ilha dos Bem-aventurados. A Ilha de Hy Brasil, ou Uí Bhreasail, em irlandês, seria um paraíso situado no oceano Atlântico, e há inúmeros mapas da Era das Navegações que marcam sua posição, como se fosse um lugar real (inclusive, altas teorias de que o nome do nosso país viria dessa terra mítica [1], e já fiz um texto aqui que passou raspando no assunto).

Se os irlandeses tinham uma ilha a oeste, e os guarani uma ilha a leste, a junção de Yvy Marã E’ỹ com Hy Brasil era exatamente o que eu precisava. Meu trabalho final de graduação iria casar os termos, e se chamaria Yvy Bhreasail. Uma das muitas grafias da palavra original, breasal, também era o nome de uma tinta vermelha usada para marcar ovelhas [1.5].

Dez dias depois, algo mais elaborado. Um desfile liderado por uma Morrigan-Iansã. Que loucura.

É, breasal do lado de lá, brasil do lado de cá, ambos vermelhos como brasa. Yvy Bhreasail seria a Terra Vermelha, ou para ser mais poético na hora de buscar sinônimos em tons mais escuros, Terra Tíria.

Daí pra Tiriana foi, claro, um empurrãozinho.

Outro momento em que as coisas simplesmente se encaixaram na minha cabeça foi quando eu resolvi jogar toda a parte irlandesa pro alto. Afinal, eu havia ficado fascinado com a descoberta de mitos indígenas dos quais nunca tinha ouvido falar. Fiquei realmente besta (e meio triste) de ter conhecido um mito celta na adolescência, e nunca ter visto sequer menção à Terra Sem Mal dos guarani. Eu queria que isso acontecesse com outras pessoas. Queria dividir o que eu estava aprendendo.

Em outubro de 2016, ilustrei diversos personagens da cosmologia Guarani Mbya. Era para ser ornamentos do relatório final do TCC, mas ficaram só no Instagram. E no tumblr.

Esse estalo se deu quando eu estava ouvindo O Canto das Três Raças, da gloriosa Clara Nunes. Eu também não era muito versado em música popular brasileira, e é muito curioso que o período em que eu descobri mais coisas sobre meu país foi quando estava fora. No caso, eu já havia voltado pra casa, a música me fez entrar em parafuso, e numa enxurrada de ideias comecei a juntar várias das leituras que havia feito pro TCC, e aos poucos um mundo ficcional foi nascendo.

Uma semente importante pro TCC e pro cenário foi um artigo que li sobre as ideias de fim do mundo dos guarani: Como acabará esta terra?, de Daniel Pierri [2]. Esse texto, e a dissertação de mestrado da qual ele nasceu, abriu meus olhos pra algo antigo. E novo. E maravilhoso.

Os guarani têm mitos de destruição do mundo. Há histórias que dizem que nós estamos na segunda versão da terra, e outras em que estamos na quarta. O mundo já foi aniquilado por motivos diversos, mas que envolviam a corrupção das pessoas ou então a falta de conduta moral em relação aos preceitos divinos. Além disso, falam sobre como no passado os guarani eram muito mais numerosos, e tinham tecnologias avançadas; havia poucos povos de outras raças, e agora as coisas (nesse último mundo) estão ao contrário.

Isso definiu o cerne do cenário. Tiriana seria um mundo antes do nosso. Uma espécie de Atlântida nas terras onde hoje é o nosso país. A base de toda a ficção que eu ando criando vem dessa história, e a partir dela fui derivando muitas e muitas outras coisas.

De volta à Clara Nunes, outro pilar do cenário veio da música As Forças da Natureza.

Quando o Sol
Se derramar em toda sua essência
Desafiando o poder da ciência
Pra combater o mal
E o mar
Com suas águas bravias
Levar consigo o pó dos nossos dias
Vai ser um bom sinal
Os palácios vão desabar
Sob a força de um temporal
E os ventos vão sufocar o barulho infernal

Tiriana não é só um mundo antes do nosso. É aquele lugar do mito guarani: ela está acabando. O mar, com as suas águas bravias, levará consigo o pó dos nossos dias. Na história do artigo do Pierri, esse mundo passado terminou num dilúvio. Nesse continente mítico que pensei, o Mar Bravio inundou a terra após um sacrilégio ter sido cometido. Um aguaceiro vermelho cobriu os céus por meses, e mesmo depois de ter terminado, o nível do oceano não parou de subir ao longo de décadas, até recentemente, quando seu avanço parou, por motivos que os povos tirianos ainda não compreendem.

Povos foram isolados, comunidades foram destruídas, milhares ficaram desabrigados e transformaram as periferias das grandes cidades, antes luminosas, em verdadeiros amontoados de gente lutando para sobreviver. Dia após dia, as pessoas choram e rezam para que o mar tírio as deixe em paz.

Um teste cartográfico de uma pequena região de Tiriana, depois do Aguaceiro. Itakuatiara e Anhãkuatiara eram uma única e imensa cidade, hoje transformada em um arquipélago pelo avanço do Mar Bravio. Todos os mapas tirianos usam o Leste como referência, por ser a direção da morada dos ancestrais divinos.

Toda a pesquisa que eu comecei para fins acadêmicos se tornou uma das coisas mais divertidas e interessantes com as quais entrei em contato na minha vida [3]. Aos poucos eu fui tentando juntar elementos de folclore, cultura popular, música, artes visuais e coisas que deixassem esse mundo de fantasia com cara de um Brasil mítico, mesmo. Familiar e, ao mesmo tempo, à beira do precipício do encantamento. Jagunços aguardando ordens de quebranteiros em botecos, e não cavaleiros recebendo missões de magos em tavernas.

O exercício de criação desse mundo é uma experimentação muito pessoal, na qual tento juntar tudo o que acho de mais legal e representativo nas culturas brasileiras que venho descobrindo. Um objetivo secundário, já pensando em leitores, é o de introduzir elementos do nosso folclore de maneira não-didática: instigando, deixando o espectador curioso e querendo saber mais sobre seu próprio povo, e não se sentir lendo um livro escolar sobre a mula-sem-cabeça, algo que me incomoda bastante em diversas ficções folclóricas com as quais entrei em contato.

Hoje, Tiriana está bem mais estruturada. Quando começamos o Encontros Aleatórios, quase dois anos depois de ter começado a escrever esse cenário, eu sabia que finalmente teria uma casa para mostrar esse mundo doido que ando criando. Eventualmente eu postava uma coisa ou outra no Instagram no no Facebook, pedaços de uma ficção em desenvolvimento. Aqui eu vou tentar fazer textos que envolvam o meu processo de criação, de forma que talvez ajudem alguém a pensar em suas próprias histórias.

Espero compilar essas coisas todas em 2019 num formato bacana. Vamos ver se consigo. Até lá, vou fazer o possível para me manter à altura das expectativas dos amigos que viviam me cobrando para ver mais coisas do cenário.


[1]: Todas deliciosamente apresentadas em Uma Ilha Chamada Brasil, de Geraldo Cantarino.

[1.5]* Irlandês é um idioma muito fanfarrão, e gosta de mudar o som de algumas coisas dependendo do contexto gramatical. É por isso que Breasail (BRA-sil) acaba virando Bhreasail (VRA-sil).
*Eu realmente gosto de notas de rodapé.

[2] A dissertação do Daniel foi editada e publicada pela Editora Elefante: O perecível e o imperecível: reflexões guarani Mbya sobre a existência. Densa e poética, mostra uma cultura que está bem na nossa porta e que quase ninguém conhece.

[3] No fim das contas, meu trabalho de conclusão de curso deixou de ser um espetáculo que nunca sairia do papel, e se tornou uma exposição educativa de verdade, num museu aqui da região. Você pode saber mais sobre ele aqui, se quiser.