Província de Verdúria. Mark Rosenfelder (1999). Mais aqui.

Uma das maiores dificuldades ao criar mundos secundários (sejam eles de fantasia, sci-fi ou o que quer que seja) é a de estabelecer consistência no que se refere à nomenclatura. Nomes estão entre as coisas mais importantes que desenvolvemos para ficção: são as palavras que serão repetidas constantemente, atreladas a algo ou a alguém, pelas quais identificamos, lembramos e recriamos memórias e experiências.

Acredito que há muitos propósitos para a criação de mundos secundários, mas vou focar aqui em dois deles: primeiro, o mundo como um cenário. Nesse caso, inventamos um milhão de coisas sobre o mundo em si. Queremos saber o que tem atrás de cada morro, embaixo de cada pedra e quem foi o último rei que usou azul num funeral. Claro que a dedicação e o nível de detalhamento desse tipo de cenário vai variar de autor pra autor, mas o principal propósito de escrever um mundo como um cenário é apresentar esse lugar para outras pessoas. No meu caso, isso se reflete principalmente na criação de terras ficcionais para uso em jogos narrativos, especialmente RPGs.

Detalhe do mapa do Esparramo dos Dormentes em Tiriana. A região central do continente tem nomes inspirados no Tupi, e quando mais nos afastamos dela, mais estranhos os demais nomes soam, por serem de línguas menos conhecidas. Autoria deste que vos escreve (2018).

Ao desenvolvermos um mundo como um cenário de jogo, daqueles livros descritivos cheios de mapas e referências históricas, a nomenclatura mais importante será a de um tipo bem específico: a toponímia. Nomes de lugares. Acredito que esse tipo de nome se sobressaia em relação aos nomes de personagens por um motivo bem específico: os personagens que criamos para esse mundo serão apenas figurantes diante dos protagonistas, que os jogadores criam para essa interação.

Não estou dizendo que os nomes dos personagens não importam; evidente que sim. O que acontece é que ao estabelecer os nomes de lugares, especialmente quando a primeira impressão que temos deles é a partir de um mapa-pôster lindo que pode ser enquadrado, estamos mostrando aos leitores-jogadores as palavras com as quais eles mais irão interagir: lugares que vão visitar, histórias que irão criar e assim por diante. A importância da toponímia, nesse caso, pode arruinar ou engrandecer um mundo secundário por causa de algo muito importante, e que muitas vezes passa despercebido, no caso dos nomes: consistência.

Tomando como exemplo fantasia medieval, que sempre vem com o kit pré-instalado de anões-ferreiros-do-subterrâneo, elfos-de-uma-ilha-distante e orcs-da-terra-sombria, vemos nomes que na maioria dos casos são inspirados em Tolkien e na Terra-média, mas que passam bem longe da coerência que o autor almejava quando estava rabiscando Arda.

Pontos de vista

Claro que não dá pra comparar os nossos cenários de RPG de fim de semana com alguém que desenvolveu idiomas e um mundo por décadas (e que por acaso era filólogo e professor de Oxford), mas alguns princípios bem legais que ele estabeleceu podem ser seguidos pra dar aquela ajuda na hora de escrever bons nomes.

Primeiro, nomes refletem os idiomas locais (na maioria das vezes). Isso significa que nomes são atrelados à cultura das pessoas que vivem em determinado território. Quando se trata de literatura, e continuando a usar Tolkien como exemplo, o nosso ponto de vista principal são os hobbits. É com eles, supostamente, que devemos nos identificar, e vemos a Terra-média a partir de sua perspectiva. Os nomes do Condado, portanto, não podem ser enigmáticos, cheios de apóstrofos e dramáticos demais. As coisas que conhecemos pessoalmente, a vida toda, nos são claras. Assim, temos a Vila dos Hobbits, Bolsão, Beirágua, a Floresta Velha, e por aí vai. Os nomes descrevem coisas do cotidiano do povo que vive ali.

Conforme nos afastamos do Condado – ou seja, do lugar-comum com o qual supostamente devemos nos identificar – nos distanciamos dessa cultura-base e passamos a ser observadores das outras. Quando mais longe, mais estranhos os nomes dos lugares soam. Coisas curiosas podem começar a acontecer: as palavras passam a ser adaptadas para os ouvidos daqueles que as ouvem, ou então pelo contato cultural podem começar a ser traduzidas, recriadas em idiomas diferentes.

O rio que os elfos chamam de Baranduin torna-se Brandevin, pela sonoridade. O reino-cidadela que em sindarin é chamado de Imladris (“profundo vale da fenda”) tem seu nome traduzido, e “vale” ou “vau da fenda” resulta em Valfenda.

O olhar do outro

Evidente que isso não ocorre apenas em mundos secundários; Tolkien era um linguista e aplicou esses princípios nos nomes que criou. Aqui é interessante mencionar que um lugar pode ter mais de um nome, sendo chamado de formas diferentes por pessoas diferentes.

Ñembyamerika (América do Sul) em Avañe’ẽ (Guarani). Jordan Engel (2014?).

Assim, no mundo real temos London e Londres, Elláda e Grécia, Zhōngguó e China, Deutschland e Alemanha, Éire e Irlanda, e por aí vai. A diferença existente é a entre endônimos (nomes que um povo dá ao local onde vive) e exônimos (nomes que estrangeiros dão a determinado lugar). O exônimo pode ser tanto uma adaptação do nome original, uma interpretação daqueles que entraram em contato, ou algo totalmente diferente.

Zhōngguó, por exemplo, significa “Nação do Meio.” A origem real de “China” é meio nebulosa, mas aparentemente vem da dinastia Qín (se pronuncia tchín), que unificou o império. O contato dos Qín com outros povos acabou transformando esse nome no mais comum internacionalmente.

O nascimento dos nomes

Brasil é, na verdade, um encurtamento de Terra do Brasil, o tal brasil sendo o nosso já muito conhecido pau-brasil, que tem esse nome porque, oras, tem cor de brasa, da qual se extrai um pigmento vermelhíssimo (ainda que certas pessoas achem que nosso país não tenha nada a ver com essa cor). Esse é um exemplo de como uma característica de um local pode se transformar num nome.

Tintureiros tingindo tecido. Des Propriétés des Choses, vol. 2, BLU Royal ms 15 E III (1482).

Uma versão alternativa maravilhosa diz que o nome do Brasil vem, na verdade, da ilha-fantasma de Hy-Brasil. Na Irlanda medieval se falava de uma ilha misteriosa que aparecia a cada sete anos, coberta por uma densa névoa mágica. Mesmo visível, jamais seria alcançada, e suas terras abençoadas ficariam intocadas para sempre. Sendo a cultura celta bastante difundida na península ibérica, há a teoria de que os navegantes buscavam a tal ilha paradisíaca em suas viagens, e que o nosso país pode ter recebido esse nome graças ao lugar encantado. E isso é um exemplo de como uma lenda pode se transformar em toponímia.

Septentrionalium Regionum Descrip., A. Ortelius (1570).
Detalhe do Septentrionalium Regionum Descrip. A. Ortelius (1570). Os países estão com os nomes em latim: Hibernia (Irlanda) é de onde vinham as histórias de Hy Brasil. O mapa original mostra diversas ilhas míticas da época. Aqui aparecem Brasil, a Ilha de São Brandão e Podalida.

Nomenclatura para lugares pode ser dividida em dois grandes grupos: primeiro, nomes para locais naturais, ou seja, como se chama tal montanha, tal rio, tal planície. Segundo, nomes para lugares criados pelas pessoas: estradas, cidades, territórios políticos. Esses são mais fáceis de serem localizados, enquanto os primeiros às vezes podem se referir a lugares mais difusos, descrevendo coisas que às vezes não valem para toda sua extensão. O Vale Verde pode ter esse nome por ter ser muito fértil, mas suas terras boas podem estar em apenas um trecho dos seus muitos e muitos quilômetros de comprimento.

Vamos chamar esses dois grupos de paisagens (naturais) e assentamentos (criados por intervenção de pessoas).

Nomes de paisagens tendem a ser, antes de mais nada, descritivos. No Brasil temos a Serra do Mar, o Planalto Central, a Zona da Mata, o Rio Doce, a Serra da Mantiqueira (amana tykyra, gota de chuva, em tupi antigo), o Pantanal, o Pico da Neblina.

Esses nomes descritivos, de lugares naturais, tendem a ser os mais antigos de uma determinada cultura ou nação, por serem os mais conhecidos pelo povo. Eles descrevem algo expressivo e que destaca o ambiente daquilo que existe em seu entorno, transformando-o num ponto de referência. Assim, é normal que se dê nomes desse tipo a rios, colinas, vales, ilhas, pântanos etc, que sejam de certa forma relevantes para um determinado grupo. Não é todo riacho e todo morrinho que vai ter um nome importante, mas sim o Rio das Onças, cujas suçuaranas raivosas vivem às margens, ou o Morro do Mel, que é cheio de colmeias de abelhas, onde muitas crianças já morreram.

A nomenclatura dos assentamentos, por outro lado, costuma girar em torno da função daquele lugar, ou então de alguma característica geográfica pontual, muito específica (semelhante aos nomes de paisagem). É comum que esse tipo de nome também seja modificado por um adjetivo que o descreva, ou por um nome pessoal que o relacione a alguém, seja essa pessoa real, mitológica ou uma figura religiosa.

Um esquema que pode facilitar na hora de criar nomes, e que estou adaptando de um artigo da Wikipedia, é o seguinte:

Figura + função + geografia: Vila Bela da Santíssima Trindade (MT)
Figura + função: Florianópolis (SC) (cidade de Floriano)
Função + nome preexistente: Fortaleza (CE) (de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção)
Função + geografia: Arraial do Cabo (RJ), Porto Seguro (BA), Arroio do Tigre (RS), Balneário Camboriú (SC)
Figura + geografia: Santa Cruz do Rio Pardo (SP), Angra dos Reis (RJ)
Nome preexistente + geografia: Lençóis Paulista (SP)
Característica geográfica: Dois Córregos (SP), Ilha Solteira (SP), Sorocaba (SP) (terra rasgada, em tupi)

No Brasil, principalmente, temos incontáveis exemplos de cidades nomeadas em honra a personagens católicos, ou então a figuras políticas e pessoas proeminentes da nossa história. Rondônia homenageia o Marechal Rondon, sertanista e idealizador do Parque do Xingu; Belém (PA) homenageia a cidade de Belém, na Palestina; João Pessoa (PB) honra o governador do estado, assassinado em 1930. De todos, pra mim o mais incrível é o estado do Amazonas, que ganhou seu nome devido ao rio, chamado assim pela suposta presença das lendárias guerreiras de Temiscira, que deviam estar bem longe de casa.

Em se tratando de assentamentos cujos nomes venham de características geográficas, temos Belo Horizonte, Boa Vista, Campo Grande e Recife, em português, e muitos outros oriundos de idiomas indígenas que, com o tempo, foram aportuguesados. Por exemplo, Ibirapuera (ybyra pûera, árvores velhas, em tupi antigo) e Erechim (RS) (rê xĩ, campo pequeno, em kaingang).

O tempo e os nomes

Quanto mais antigo um nome é, mais provável que seu significado seja, aos poucos, esquecido. Culturas se transformam, o que significa que idiomas passam por transições em que as palavras perdem ou ganham pedaços, ou alguma outra cultura entre em contato e substitua elementos ou nomes inteiros de determinada região.

Acredito que, no Brasil, tenhamos os maiores exemplos desses nomes antigos, que ninguém mais sabe o que significa. Devido às marchas dos “heróis” bandeirantes que singraram o interior do país, temos uma imensidão de topônimos que vem daquela época, onde o tupi e a língua geral eram a regra nas áreas mais distantes. Quando um povoado não recebia o nome de algum santo católico, muitas vezes recebia um nome nessas línguas indígenas. Com o genocídio indígena e a extinção da língua geral, hoje nossos mapas são salpicados de palavras que poucas pessoas conseguem traduzir, se é que sabem que significam alguma coisa.

Aqui onde moro, ninguém consegue dizer com 100% de certeza o que significa Bauru (SP). Há a possível origem em ybá uru, “cesto de frutas”, mas outras traduções também são sugeridas (como sanduíche de rosbife e muçarela, por exemplo). A menos de 100 km, temos Botucatu, cujo lema seria uma tradução do nome: “cidade dos bons ares“, de ybytu katu, do tupi. No entanto, é mais provável (e na minha opinião, mais lógico) que signifique serra boa, de botura katu, na língua geral meridional.

Além desses nomes adaptados de uma língua preexistente, há aqueles que são palavras comuns, do mesmo idioma local, mas que variam pela praticidade ao falar, como a síncope (redução ou simplificação de fonemas).  Alagoinhas (BA) tem esse nome hoje porque é muito mais fácil do que Santo Antônio das Lagoinhas. “As lagoinhas” acaba sendo reduzido a uma palavra só. A cidade onde cresci era um distrito, até 1959 chamado Vila de Areia Branca, devido ao ribeirão Areia Branca nas proximidades. Quando foi emancipada, tornou-se Areiópolis; hoje é chamada coloquialmente pelos nativos de Ariópe, e só consigo achar isso maravilhoso. O próprio gentílico da cidade, que oficialmente (e pela gramática) é areiopolitano, para os daqui é claramente areiopolense. Quem sabe no futuro formalizam a grafia?

Nomes em fantasia: consistência

Retomando o propósito que me fez começar esse artigo, quando se trata de criar nomes para mundo secundários, o que os torna realmente bons é a consistência. Você pode criar nomes impronunciáveis sem problema (além do óbvio de serem impronunciáveis), desde que mantenha eles todos seguindo uma mesma lógica.

O reino de Snegsara, nas Terras Sagradas. Os nomes eram todos baseados na sonoridade do acadiano (2010). Dá pra saber mais sobre o cenário aqui.

Um parêntese: espero, no futuro, escrever um artigo dedicado a nomes em cenários sci-fi, contemporâneos ou futuristas. Por enquanto vou começar do clássico.

Sem entrar em detalhes ortográficos e gramaticais (que vou deixar para um próximo texto), podemos seguir uma linha de raciocínio que vai do geral para o específico, de maneira bem simples.

Baixando o DLC da fantasia medieval humano-anão-elfo-orc, podemos pensar nas características mais gerais dessas raças, partindo do pressuposto de que os humanos são aquele povo mais numeroso e genérico com os qual nos identificamos, os anões são aqueles ferreiros habilidosos que vivem reclusos nas montanhas, os elfos os artistas refinados reclusos nas florestas, e os orcs o povo maligno e feio além de uma cadeia de montanhas sombria com algum vulcão por perto.

Assim, para os humanos, ou seja, nosso ponto de vista, os nomes deveriam ser aqueles que consigamos entender sem problemas. As cidades terão nomes pronunciáveis e cujo significado seja, em geral, claro. Em geral, podemos seguir as regras que comentei há pouco, usando nosso próprio idioma.

Eu percebi, ao longo desses anos, que há uma tendência de muita gente de criar nomes basicamente juntando palavras, transformando-as em uma coisa só. Em As Crônicas de Gelo e Fogo temos Atalaialeste-do-Mar, Correrrio e, sabe-deus-porque-não-traduziram, Winterfell. Essa prática de juntar palavras faz mais sentido em inglês, e vem de uma tradição anglófona. Em português às vezes pode ficar estranho, mas se tratando de fantasia e considerando que o próprio gênero literário vem de fora, já é algo que virou lugar-comum.

Quando vamos criar nomes que derivam de raças fantásticas, é interessante pensar em como seria a sonoridade dos idiomas desses povos. Tolkien deixou os elfos cheios de vogais abertas, ditongos harmoniosos e, em geral, palavras extremamente musicais, refletindo a diafaneidade dos Eldar. Beleriand, Arveninen, Cuiviénen, Doriath, Nargothrond e os exuberantes Caras Galadhon, Atalantë e Tol Eressëa. Claro que todos esses termos realmente têm significados, já que ele criou as línguas, mas mesmo sem saber qual é esse idioma, conseguimos perceber que as palavras fazem sentido entre si.

A toponímia dos anões da Terra-média gira em torno de sons duros, pesados e fortes, que lembrem os salões subterrâneos dos reis antigos. Khazad-dûm, Azanulbizar, Zirakzigil, GundabadBarazinbar e Kheled-zâram são alguns exemplos.

Os orcs têm nomes maus. Os sons são maus. Machucam. Ferem o ouvido. Se Tolkien quisesse, seborreia poderia ser um nome orc sem problema. Na Terra-média essas criaturas não têm uma língua própria, já que eles corrompem outros idiomas e transformam numa espécie de linguagem em transição. No caso, podemos usar como exemplo a Língua Negra, cujas palavras são ainda mais malignas: Dushgoi (Minas Morgul) e Lugbúrz (a Torre Negra). Não há muitos nomes de lugares nessa língua disponíveis (visto que o leitor nunca é colocado do ponto de vista dos orcs), mas há frases inteiras no idioma que mostram como sua sonoridade é horrível. Em As Duas Torres, no capítulo Os Uruk-Hai, um dos vilões grita Uglúk u bagronk sha pushdug Saruman-glob búbhosh skai!. A frase foi criada por Tolkien com o único propósito de soar feia aos ouvidos de quem a escutasse, sem significado específico, e só muito tempo depois disponibilizou possíveis traduções (mas é algo que gira em torno de “Uglúk ao poço de bosta com a escória fedorenta de Saruman, seus merda!”).

No fim das contas, e de maneira resumida: antes de pensar nos nomes dos lugares que criar, temos que pensar em quem vive nesses lugares, e quem foi que fez o mapa que estamos vendo. Um bom mapa de fantasia conta uma história antes mesmo de lermos o primeiro parágrafo de um romance, assim como uma ficha de personagem conta muito sobre o sistema de RPG que vamos jogar. As duas coisas são, em geral, as primeiras que observo antes de ver o resto dos livros, e já demonstram a atenção e o cuidado dos autores na hora de apresentar suas criações.

Esse é o primeiro texto de uma série infinita de elucubrações sobre onomástica, linguagem e etimologia. Logo mais eu volto. Até lá!