Imagem de divulgação.

“Por um longo tempo, estivemos em guerra com Os Chacais. Mas agora que os expulsamos, nós temos isso — um ano de relativa paz. Um ano tranquilo, no qual podemos reconstruir nossa comunidade e reaprender a trabalhar em conjunto. Com o Inverno, os Pastores da Geada chegarão, e pode ser que não sobrevivamos além disso. Mas ainda não sabemos disso. Tudo o que sabemos é que agora, neste momento, há a oportunidade de construirmos algo.”


Esta é a premissa desse jogo tão peculiar, chamado The Quiet Year. Criado por Avery Alder, foi vencedor do Indie RPG Awards de 2013 na categoria de jogo mais inovador (Most Innovative Game) em 2013.

The Quiet Year é um jogo de desenhar mapas. Sobre explorar coletivamente as dificuldades de se reconstruir uma sociedade após um evento catastrófico, com recursos limitados, escolhas difíceis, possíveis discordâncias entre os membros da comunidade e perigos naturais. Cada decisão feita durante o jogo é registrada visualmente em um mapa, que só pode ser marcado com símbolos, desenhos e ícones. Os jogadores trabalham em conjunto para criar e manter uma comunidade próspera, mas também devem inserir problemas, conflitos e tensão durante a partida.

A primeira vez que tive contato com a ideia do jogo, fui levado a pensar que a premissa era frágil, talvez até preguiçosa. Como poderia o jogo não definir os eventos iniciais, deixando todo o trabalho para os jogadores? Sobre que ideia a historia seria contada? Quem eram Os Chacais, afinal? Se eu pudesse mandar uma mensagem de volta no tempo para mim mesmo na época, seria essa: “Sabe de nada, inocente”. Infelizmente, The Quiet Year ficou salvo na aba de “ler depois” do navegador por tempo demais.

Um dia, acabei lendo sobre ele novamente, e resolvi dar uma chance. Comprei o pdf no site oficial da editora (Buried Without Ceremony), imprimi as regras e li com bastante atenção. E finalmente entendi sobre o que se tratava.

Apesar de o site vender cartas específicas para o jogo, The Quiet Year pode ser jogado com um baralho comum e uma tabela de conversão. Foi assim que joguei a primeira vez. Cada naipe do baralho representa uma estação do ano: o naipe de Copas é a Primavera, Ouros representa o Verão, Paus o Outono, enquanto Espadas simboliza o temido Inverno.

As cartas de cada naipe são embaralhadas entre si, mas colocadas na pilha em ordem de estações. A cada rodada, um dos até quatro jogadores compra uma carta, lê sua descrição em voz alta e toma uma decisão. Ninguém pode conversar durante o jogo, a não ser que a comunidade queira realizar um debate. Aliás, cada jogador representa alguns membros da comunidade, e tem uma gama limitada de ações que pode tomar em sua rodada, após resolver o que a carta comprada propôs: descobrir algo novo, iniciar um debate ou começar um projeto. Cada carta representa uma semana. Como o jogo dispensa os coringas do baralho, temos exatamente 52 cartas — 52 semanas — para jogar.

Uma carta geralmente propõe duas escolhas que o jogador que a compra pode tomar. Durante a fase da Primavera, o tom do jogo é otimista. A comunidade começou a ser reconstruída há pouco tempo, e as cartas ajudam a definir suas características mais marcantes. É normal que elas façam perguntas sobre as pessoas da comunidade, ou sobre os arredores de onde as habitações estão sendo construídas. Quais recursos estão disponíveis na região, quais lendas e histórias existem sobre o lugar, onde todas as pessoas dormem?

Conforme o jogo avança e as cartas são compradas, os naipes mudam e as estações avançam. O tom e clima do jogo também se altera. Durante o Verão os recursos se mostram abundantes, mas as pessoas acabam se tornando muito confiantes e impulsivas. O Outono começa a trazer problemas, riscos e perigos para as pessoas, ao mesmo tempo que as colheitas são feitas. As escolhas que as cartas apresentam traduzem a sensação e o presságio de que algo ruim pode acontecer a qualquer momento. Quando as cartas de Espadas começam a ser compradas, a comunidade tem cada vez mais chances de entrar em colapso e os conflitos são mais frequentes. Alguns recursos podem se tornar escassos, e o jogo pode terminar a qualquer momento. Quando a carta do Rei de Espadas é comprada, os Pastores da Geada chegam, e a história termina imediatamente.

Cabe então aos jogadores, analisando como se deu o desenrolar da história de sua comunidade, conversarem e decidirem a identidade ou a natureza dos Pastores da Geada.

Mapa resultante da minha primeira partida de The Quiet Year.

Na primeira partida que joguei, contamos a história de um grupo de pessoas que sobreviveu a uma invasão de feras, que foram expulsas depois de muito esforço. A comunidade então começou a reconstruir sua vida aos pés de uma montanha e à beira de um rio. Descobriu indícios de uma máquina misteriosa enterrada sob a montanha, mas demorou demais para tomar providências ou encarar a situação com a seriedade necessária. No final, esta máquina acabou causando tremores e fissuras no terreno, que levaram a destruição de quase tudo o que havia sido construído durante o ano.

A segunda partida foi bastante interessante, também. Não participei diretamente do jogo, não como jogador pelo menos. Mas mediei a partida durante uma atividade que ministrei no Sesc aqui de Bauru. Reuni um grupo, expliquei as regras do jogo e, controlando o tempo e tirando as dúvidas, observei a história ser construída aos poucos. O grupo, formado por três crianças de 9 a 12 anos e um adulto, começou a contar a história de uma comunidade insular, na qual uma garota tinha ideias revolucionárias, talvez problemáticas aos olhos de alguns dos moradores da região. Durante todo o ano, ela tentava realizar atos cada vez mais perigosos para a comunidade, que terminou por aprisioná-la. Ao final do jogo, com a chegada dos Pastores da Geada, foi decidido que a garota seria filha de divindades do mundo, e o fato de ela ser constantemente ignorada e até maltratada pelas pessoas atraiu a ira de seus pais.

Eu já havia visto o potencial narrativo durante a primeira partida, mas foi essa segunda que fez com que eu me apaixonasse pela proposta e pelo formato do jogo.

Enfim, apesar de não ser um RPG como conhecemos, é um excelente jogo narrativo, com vários elementos de jogabilidade que não foram citados aqui, mas que eu recomendo, e insisto, que vocês comprem e joguem!