O mito das três raças brasileiras, que já se tornou senso comum, é mais do que problemático. Quando alguém afirma que o Brasil é feito de três raças, dá a entender que existe uma certa igualdade tripartida, mas que nas entrelinhas está apagando todos os crimes da invasão portuguesa nessas terras, o genocídio indígena e a escravização e o tráfico de povos africanos. Só o fato de falar em “raça” é algo digno de repúdio, pra começar.

Já comentei em outro texto que a faísca que me fez pensar em Tiriana foi a música O Canto das Três Raças, da Clara Nunes. A letra é maravilhosa, e ainda que dê mais destaque aos negros e aos indígenas, ainda coloca os inconfidentes como um destaque da raça europeia mas que, a meu ver, nada mais são que brancos tentando mudar coisas que brancos fizeram… Enfim. Um trecho da música diz assim:

E de guerra em paz
De paz em guerra
Todo o povo dessa terra
Quando pode cantar
Canta de dor

Essa estrofe passa muito um dos sentimentos que eu quero trazer pra Tiriana: o cantar de dor. O mundo tá uma desgraça só por tudo quanto é lado, e mesmo nos momentos festivos as letras das canções relembram que tudo está por um fio.

Mas voltando ao mito das três raças, já observei em outros universos de fantasia inspirados no Brasil uma certa tendência a se ater a essa história, numa saída muito fácil. Os três povos iguais, unidos, sem absolutamente nenhuma diferença ou relações de dominação ou opressão – ou então variantes em que cada “raça” é apenas um verniz de estereótipo em cima de elementos fantásticos. Como eu queria em Tiriana um maior destaque aos povos indígenas, usei os mitos que tive acesso para pensar nesse mundo. Os guarani têm histórias de que nos mundos passados havia mais gente do seu povo, e que os outros povos viviam em ilhas (entenda: mundos) distantes, muitas vezes cada um com seu próprio ser criador. Os não-indígenas seriam minoria, nesse passado, e foi assim que eu fiz. As três grandes gentes tirianas, paralelas aos povos brasileiros, são os etarã (indígenas), os ibatani (negros) e os auros (brancos, principalmente ibéricos).

A minha ideia era manter uma certa proporção baseada no número sete, por esse ser o número das principais estrelas das Plêiades (um asterismo presente em muitos mitos, de muitos povos, e que uso em muita coisa no cenário). No início, pensei em cinco povos indígenas, um negro e um branco, mas pela forma como configurei a geografia, e considerando os temas que queria abordar, acabei dividindo os últimos em dois pares. E provavelmente existe um outro povo ainda perdido.

Nesse texto eu abordo a primeira gente de Tiriana, e complemento com notas de desenvolvimento sobre meu processo, e que podem acabar sendo úteis para outros criadores. Mas vamos lá!

Como cito vários lugares, fica aqui um mapinha mais amigável pra dar noções gerais dos ondes.

Etarã: os filhos da terra

Os cinco povos etarã são aqueles que, até onde se sabe, nasceram em Tiriana. Todos eles têm em comum o fato de que no passado foram escravizados por uma civilização de seres quase-divinos, extintos há quase dois milênios, que agora são chamados apenas de “Antigos”, ou, na língua geral, Exarai [se fala etsarái]. Depois da destruição dos seus feitores, os povos se espalharam pelo continente, dividindo-se nos cinco grupos mais ou menos definidos que hoje habitam as terras conhecidas. Há tempos que deixaram de ter características em comum, além da cor da pele e de alguns costumes e palavras que permanecem os mesmos em suas culturas, muitas vezes definidas pelo local em que vivem.

Mulheres aikuro, araukang e caicé.

Os aikuro viviam em Aulutsu, no oeste, e sua maior cidade era Aikuretama. Descobridores e maiores artífices da tecnologia da pedra-luz, espalharam suas hordas pelo continente numa tentativa de dominação dos outros povos, até que de sua capital partiu o Estilhaço, esvaindo toda a energia que era a força de sua Soberania. As terras dos aikuro foram tomadas pela Mata Escura, suas tropas rechaçadas pelos vizinhos, e hoje vivem isolados em suas cidades-estado em meio à floresta pestilenta, ou então às margens das vilas das nações longe dali.

De todos os etarã, os araukang são os que mais se distanciaram dos parentes, muitas vezes sendo considerada uma família à parte. Após a tragédia do assassinato da Mãe do Sul, em que o mundo tremeu e os Encarnados caminharam pela terra há quase mil anos, os araukang isolaram-se por completo na região sulina de Kenfrir. Adaptaram-se ao inverno sem fim do sul, esqueceram dos deuses dos seus ancestrais e hoje vivem num estado de vigilância permanente, lidando com o retorno dos mortos, que parecem abandonar o invisível e retomar seus corpos congelados, invadindo a terra dos vivos e destruindo as cidades em seu caminho.

Os caicé são os mais numerosos dos etarã, e dominam o centro do continente. Quando a pedra-luz foi descoberta e sua tecnologia dominada, foram eles os principais difusores das maravilhas: construíram estradas, iluminaram a noite grande e afastaram os espíritos raivosos e criaturas da escuridão. Hoje, os caicé são os que mais sofreram com a perda da luz, tendo que reaprender todos os costumes antigos para conseguir sobreviver num mundo sem a itavera. Formam a principal cultura de Tiriana, e ditam muitos dos costumes de seus parentes vizinhos.

Autoproclamados como o povo mais antigo e a origem de todos os etarã, os ikã vivem no que restou do oeste, e espalhados em comunidades menores de imigrantes por toda Tiriana. Sua região de origem, Pachai, foi tomada por maldições e espíritos malignos bem antes da tragédia do Estilhaço acontecer, e hoje eles fazem de tudo para conseguir retomar suas cidades das Crias de Ururo, a entidade ancestral que despertou sob as terras do oeste distante. Os ikã costumam estar entre os mais tradicionalistas e conservadores dos povos, mantendo ritos e hábitos que poucos dos seus irmãos preservam – entre os etarã, são praticamente os únicos que arriscam navegar no Mar Bravio, ainda que acreditem ser perseguidos pelos espíritos do passado.

A terra-mãe dos payuma sempre foi o centro do mundo: Ibiraretã, a mata sem fim. Não há uma gente mais erudita nos ermos que as caçadoras da grande floresta. Não havia, pelo menos. Com o fim da pedra-luz, suas cidades foram tomadas pela escuridão, e a proteção que a mata lhes oferecia transformou-se rapidamente em destruição, quando os numes da mata funda engoliram suas casas por completo. A única luz que restou dos payuma foram as Setenta Cidades da Rainha Kunyari: grandiosas árvores-mãe tomadas por vilarejos em seus troncos e copas, que foram elevadas por sua rainha-feiticeira aos céus de Tiriana, e hoje vagam pelo firmamento, para sempre distantes dos seus irmãos que sofrem na terra.

Um ikã e um payuma.

Notinhas de desenvolvimento

Tomei os guarani, que mais conheço, como sendo a base ou o ponto de vista principal de quem “vê” Tiriana. Assim, muitas coisas são originadas nas histórias dessa gente, bem como a língua – tanto o tupi antigo, quanto o guarani e seus dialetos, são possivelmente os mais difundidos no português brasileiro, então é a partir deles que eu dou a sonoridade daquilo que é considerado comum ou “língua geral”.

A própria palavra “Etarã” significa “parente”, e também dá origem à porção central do continente, Etarama: o sufixo -rama sendo uma contração de “retama”: região, pátria ou terra. Terra dos parentes. Sendo esse centro o ponto de entrada de quem conhece Tiriana, os nomes dessa região estão quase sempre em português, tupi ou guarani, com uma sonoridade que nos é familiar. As demais regiões ou elementos costumam ter nomes mais exóticos, também baseados em linguagens originárias, na medida do possível, ou em minúcias que resolvi espalhar pelo cenário, principalmente no que se refere à flora e fauna brasileiras. O nome dos caicé, por exemplo, vem do binômio do pau-brasil, Caesalpina echinata. O fato de serem o ponto de vista do leitor também determina a escolha de C em vez de K para a grafia da maior parte das palavras comuns relacionadas a eles: o nome que tinha pensado originalmente, ka’esá, soava estranho demais.

Muito dos aikuro (além do nome) vem dos kuikuro – a localização de Aikuretama é onde hoje existe Kuhikugu. Para dominar a região gélida de Kenfrir, escolhi os kaingang como inspiração dos araukang. A origem do nome é simples: araucária, sua árvore sagrada, e o resto você deve imaginar. Sua terra natal foi nomeada também pela língua de verdade: vem de Rã krẽfĩn, termo kaingang para “sul”.

Os ikã são, primordialmente, referência aos incas, e a região que habitavam remete, hoje, à Bolívia e aos Andes. Quando fui pensar nas vestimentas tradicionais desse mundo, recorri aos incas e aos ashaninkas (povo indígena aparentado), pois são povos que usam longas roupas de tecido, chamadas kushma. Por quê? Resolvi que esse passado remoto talvez tenha sido numa época de glaciação, então Tiriana é um pouco mais fria do que o Brasil é hoje. No meu processo, os aikuros e os ikãs são realmente os povos mais antigos, então todas as outras culturas acabam tendo elementos derivados delas (marcadamente no vestuário e alguns adornos). As Crias de Ururo, para as quais eles perderam suas terras, são demônios inspirados pela diablada de Oruro, na Bolívia.

Ashaninkas usando a kushma, vestimenta tradicional (foto: Mauro Almeida/Instituto Socioambiental).

Por fim, os payuma são inspirados nos povos amazônicos, e seu título também vem de um binômio: Sapium glandulosum, a seringarana, árvore nativa da qual se extrai látex. Há uma lenda em Tiriana que atribui a eles a invenção dos sapatos, criados para evitar espinhos encantados do chão – assim como aqui, no nosso mundo, as botas de borracha podem ter sido criadas graças a nativos brasileiros. As Setenta Cidades da Rainha Kunyari são uma transposição quase que direta de uma lenda sobre as amazonas brasileiras, lideradas pela rainha Conhorí.

Nos próximos textos, abordo um pouco mais sobre os dois povos ibatani, que vieram de Nri há muito tempo atrás, bem como dos auros, que há menos de dois séculos aportaram em Tiriana fugindo dos seiscentos diabos que tomaram sua terra.