Já falei numa postagem anterior como foi que Tiriana surgiu, e quais foram as principais inspirações. Naquele texto, fui mais genérico sobre o cenário em si, falando das fontes que estou usando para criar esse mundo. Resolvi ser mais preciso e começar uma série de textos que ficam num meio caminho entre design e desenvolvimento e ficção, de forma a mostrar como estou usando cada referência no projeto.

Ka’a, um espírito da mata, e Naipí, uma pajelante. Um dos primeiros desenhos que fiz pro cenário.

Antes de mais nada é legal deixar clara a motivação de criar esse cenário, porque ela também tem a ver com o tema que move as pessoas desse mundo: a valorização de antepassados. Eu comecei a escrever Tiriana como um meio de enaltecer histórias locais brasileiras, focando especificamente nas indígenas e nas de matriz africana. Quando pesquisei sobre os Guarani e os Kaingang para o meu TCC no curso de Design, fiquei legitimamente besta com a quantidade de mitos, histórias e costumes incríveis de povos que vivem ao nosso lado, mas às margens.

Parêntese: apesar de eu ter umas gotinhas de sangue indígena (assim como quase todos nós brasileiros), quando eu digo “antepassado”, é bom frisar que o uso dessa palavra aqui significa “aqueles que viveram antes nesse território”. Quando se fala de parentes consanguíneos, se diz “ancestral”. Assim, você pode não ter um ancestral indígena, mas é certo que tem antepassados do lugar onde mora hoje.

Como isso se reflete no cenário? As sociedades de Tiriana prosperaram numa espécie de Era Dourada de quase trezentos anos, que começou com a descoberta de um mineral com propriedades “mágicas”, uma rocha luminosa chamada de itavera, ou simplesmente “pedra-luz”: uma fonte de energia praticamente inesgotável. O que antes eram milhares de povos esparsos no continente, vivendo de forma rudimentar, evoluiu em grandes nações tecnológicas graças à essa fonte de energia e aos poucos registros que existiam de um povo antepassado muito poderoso e que desapareceu na história – há exatos 1577 anos (e cuja história fica pra próxima).

Cunhei “itavera” a partir do dialeto guarani-mbya, ita: pedra, vera: lampejar, produzir relâmpago. Tecnicamente a pronúncia seria “itaverá”, mas eu falo “itavéra”, mesmo.

Por três séculos, a exploração da itavera moldou a política de Tiriana, com nações ascendendo e caindo, e maravilhas erigidas com o auxílio da encantaria resgatada dos povos esquecidos.

Uso o termo “encantaria” como uma palavra mais abrangente que “magia”. No Brasil, Encantaria é um manifestação religiosa sincrética do Norte e do Nordeste, que reúne visões africanas, indígenas e ibéricas, e fala de entidades “encantadas”, ou seja, que não morreram, e sim desapareceram misteriosamente “no Encante”. A encantaria reúne feitiços, seres mitológicos, lendas e pessoas de renome, e tem tudo a ver com o que eu queria para Tiriana, então tem um papel bem grande a ser desenvolvido.

Há 22 anos, no entanto, uma catástrofe aconteceu: algum rito desempenhado pelos reis-feiticeiros de Aikuretama, a cidade dourada, destruiu a itavera de suas torres aladas, que afundaram na baía escura. O Estilhaço, como foi chamado, afetou a pedra-luz de dois terços de Tiriana, em alguns lugares fazendo a luz esvair e morrer, e em outros estraçalhando as rochas e causando mortes sem fim.

O filhos de Aikuretama contam a história de que foi Sumicã, uma mãe-do-mato, que teria surgido das águas durante o rito e destruído a cidade, causado o cataclisma.

Mãe Sumicã, a Ladra dos Dias, a Desgraça do Mundo, hoje dorme sobre as águas da baía.

Trezentos anos da artesania que mantinha as cidades funcionando, as casas seguras e afastava as criaturas da noite: tudo se foi, em uma única noite.

A Queda de Aikuretama findou a era de prosperidade, e o Estilhaço não só destruiu a pedra-luz como pareceu ser o anúncio do fim: seguiram-se meses de chuva sem fim, e o oceano invadiu o continente e engoliu todo o litoral, onde jaziam as grandes cidades, mudando a geografia para sempre. Da cidade dourada, espíritos de eras passadas ressurgiram, contaminaram as águas, as plantas e os animais, e uma sombra se espalhou pelas florestas tirianas, em enormes áreas de Mata Escura, infestadas de criaturas deformadas e encantados corrompidos.

O Aguaceiro e o fim do mundo como um dilúvio vem de um mito guarani-mbya, e você pode saber mais sobre ele aqui. Foi esse artigo do Daniel Pierri que praticamente me fez começar o cenário todo.

Hoje, sem a energia da pedra-luz e com as suas maiores cidades sob a água, os povos de Tiriana tiveram de reviver os modos antigos de praticamente tudo o que mantinha as sociedades funcionando: as formas originárias de caça, pesca, agricultura, alimentação, transporte, as técnicas artesanais de edificação e meios de habitação; tudo o que era abastecido pela itavera se perdeu, e as novas comunidades – que se organizaram no alto de morros, planaltos e o mais longe possível do mar – tiveram de reaprender a viver usando o conhecimento dos seus antepassados.

Ainda que o Aguaceiro que despertou a fúria do Mar Bravio tenha durado poucos meses, as águas só pararam de subir há quatro anos. Sabe-se que o oceano é amaldiçoado e que espíritos raivosos habitam suas águas, e até mesmo grandes lagos e rios parecem infestados com todo tipo de criatura que antes era repelida pelo brilho da pedra-luz.

Travessia, de Carybé.

A chuva sempre é vista com desconfiança, e os mais velhos sequer pisam fora de suas casas em dias nublados, orando por suas almas com medo do fim do mundo. Há, no entanto, toda uma geração de pessoas hoje entrando na idade adulta e que nunca viu Tiriana em sua época de maravilhas. Não fosse a presença dos fragmentos de itavera morta por todo canto – ou a encantaria das nações que ainda tem a pedra-luz ativa –  esse mundo passado não seria nada além de histórias.

No caso de Tiriana, é o conhecimento ancestral que ajuda a reconstruir a civilização. Cerca de dois terços do continente perdeu a tecnologia que os fazia funcionar, e aqui e ali ainda encontram-se pontos em que a luz ainda brilha e sua energia pode ser resgatada, em meio aos perigos da Mata Escura, que retorceu a forma da terra e tornou o mundo fora das cidades ainda mais perigoso.

A região central do continente foi a mais afetada pelo Estilhaço. Há nações em que isso sequer ocorreu, e que se tornaram os novos centros das civilizações tirianas, não fosse pelo fato de serem de povos, em geral, beligerantes em relação aos centrais – que antes eram os mais prósperos.

Eu continuo chamando o continente de “Tiriana” porque é o nome que eu uso desde o começo, mas ainda não sei se a palavra vai se referir apenas à massa de terra principal que restou ou a tudo o que existia antes do Mar Bravio subir.

Não fazia ideia de como poderia sequer começar a desenhar esse mundo, então fiz o óbvio dos óbvios: eu queria que fosse o Brasil num passado mítico, então com a ajuda de alguns sites de simulação de nível do mar, peguei nosso continente e subi a água em 300 metros. E pronto.

300 metros de água, mais uma inversão da deriva continental, e plim.

Muito antes de pensar em Tiriana, eu era fascinado com a história de Kuhikugu, uma cidade perdida da Amazônia. Ela acabou se tornando, em Tiriana, a dourada Aikuretama. O próprio nome da cidade vem de kuikuro, o povo que hoje habita a região no Xingu, e -(r)etama, palavra tupi para terra, pátria ou região. Em Tiriana, os Aikuro são o povo que causou o Estilhaço, e muitas das histórias, religião e mitos que estabeleci para eles são inspirados na cosmologia kuikuro.

Praticamente todas as cidades e pontos principais de interesse ficcionais batem com lugares reais no Brasil de hoje – sítios arqueológicos, principalmente -, que seriam apenas ruínas daquele tempo mítico que estou tentando estabelecer no cenário. A Serra da Capivara (PI), a Pedra do Reino e a Pedra do Ingá (PB), a Lapa Vermelha (MG) e o Vale do Catimbau (PE) são algumas das localidades que terão bastante importância em Tiriana.

Tiriana com o contorno aproximado do Brasil; o ponto vermelho é Aikuretama, a área escurecida é a zona afetada pelo Estilhaço.

Ainda que o cenário tenha muitos outros temas e conflitos, acredito que esse retorno forçado às origens, e os perigos de não conhecer mais a terra onde se vive, seja o ponto central. Como tudo partiu do Estilhaço e do Aguaceiro, achei melhor começar por esses pontos, por serem tanto conceituais como “geográficos”, por assim dizer. Dessa forma, nos próximos textos eu trago mais elementos do cenário e vou destrinchando tudo aos poucos.

A própria pedra-luz tem um papel muito maior em uma das religiões tirianas, a Fé Namurana. Segundo seus profetas, as Sete Filhas do Céu são as responsáveis por tudo o que existe. Chamadas igualmente de Itaveras, e coletivamente de Itaverendi, as sete Mulheres-Relâmpago são as figuras mais importantes da cosmologia de muitos dos povos, e suas histórias se confundem com as origens da brava gente tiriana.

No próximo artigo, vou falar um pouco mais sobre os povos dessa terra e de como quebrei um pouco a cabeça para representar uns brasis nessa tentativa. Até!