Esse artigo é continuação direta do texto da semana passada, Democratizando RPG por meio da linguagem: por uma tradução dos termos de D&D.

Como todo bom adulto vacinado e razoável, é importante parar e tentar entender o outro lado da discussão, em vez de tapar os ouvidos e ficar gritando biroliro até a Opinião Contrária desistir e ir embora. A minha opinião é bem clara quando se trata desse assunto, mas existem motivos mais do que válidos para usar estrangeirismos na mesa.

É só um jogo, oras

Primeiro, e indo contra a minha impressão de que falar em inglês lembra que eu estou jogando, bem: é só um jogo, mesmo. Não tem problema algum em falar palavras em outro idioma, desde que as pessoas entendam o que está acontecendo na história. O fato de alguém falar fireball em vez de bola de fogo não vai diminuir o estrago que os 8d6 vão fazer no coitado do alvo, e as mãos do mago ainda vão ficar sujas de cocô de morcego¹.

Evitar ruídos de comunicação

Inegavelmente, os livros publicados oficialmente ainda estão em inglês. As pessoas aprendem as regras em outro idioma, e em boa parte das vezes, é mais fácil manter os nomes originais dos elementos do jogo do que traduzir. Dentro do seu próprio grupo, os jogadores podem divergir se vão fazer testes de “trato com animais” ou “lidar com animais”, então pode ser mais fácil pedir logo um teste de animal handling. O mesmo acontece com sleight of hand (Prestidigitação? Pungar?) e performance (Atuação? Performance, mesmo?), que podem atrasar as coisas.

Hábito

Muitas vezes ligado ao fato dos livros estarem em inglês, tem gente que simplesmente se acostuma com os termos e usa eles como estão. Da mesma forma, tem gente (geralmente das antigas) que sempre dependeu de produtos importados, e falar em português, na verdade, é que soa estranho. Isso vale, principalmente, para termos mais clássicos e siglas, como HP (hit points) em vez de PV (pontos de vida), AC (Armor Class) em vez de CA (Classe de Armadura) e slot em vez de espaço (para magias), por exemplo. Eu mesmo falo slot de vez em quando – o porquê eu não sei, já que comecei a jogar usando tudo em português.

Mas acho que de todas as tradições, tem uma que nunca morre: XP, para experience points (pontos de experiência). Eu mesmo não me vejo falando EXP.

Traduções problemáticas

Tanto witch quanto hag são bruxas. Mas não são a mesma coisa. Como eu traduzo swashbuckler? E ranger? Por mais que existam equivalentes em português, muitas vezes não são palavras que passam os conceitos desses elementos. “Fanfarrão” não remete exatamente às peripécias do primeiro, assim como “patrulheiro” muitas vezes acaba transformando o segundo em uma espécie de soldado. Aliás, ranger só foi ser traduzido no Brasil na quarta edição de D&D, justamente como Patrulheiro, e a internet virou um pampeiro por causa disso. Às vezes, na falta de uma tradução que satisfaça as necessidades do grupo, é mais fácil falar o nome original.

– Patrulhei!

Pulando dos MMOs para os RPGs de mesa

Existe muita gente que, antes de conhecer os jogos de mesa, jogou muitos RPGs eletrônicos, principalmente online. Hoje em dia é comum que os mais famosos deles já estejam em português, mas pra quem tem mais ou menos a minha idade (três longas décadas), a infância e a adolescência não foram presenteadas com jogos na nossa língua: era tudo em inglês. Daí, trazer termos do videogame se torna natural, quando se fala de mecânicas comuns a esses dois mundos: HP, MP, level, char, dropar e tudo mais.

Aqui eu faço uma pausa nessa defesa do outro lado pra dizer que: acho isso muito chato (e meio bobo). Estar numa mesa de D&D e alguém falar de ver o loot que o monstro dropou e farmar bastante pra poder levelar vai além das minhas capacidades de manter as estribeiras.

Vantagens

Aprender outro idioma*

Essa é uma vantagem com um imenso asterisco de advertência do Ministério do Bom Senso. Eu devo muito do inglês que sei hoje lendo livros de RPG (principalmente os do Mundo das Trevas [2004], antes de serem trazidos ao Brasil). Você exercita demais o seu inglês se parar pra ler os livros, não se usar apenas termos de regras durante o jogo. Isso é uma baita prática de leitura e vocabulário, considerando que pelas temáticas dos jogos é comum que existam muitas palavras incomuns até mesmo para falantes do inglês — ou você acha que o gringo médio sabe o que é um quarterstaff ou um cantrip? O asterisco no título ali é justamente esse: decorar termos em inglês não é aprender a falar inglês.

Participar de uma comunidade ainda maior

Se você fala inglês e o seu grupo de jogo também, é natural que usem os materiais nesse idioma. Ainda melhor, não só conseguem participar dos grupos e fóruns de D&D brasileiros, como também dos internacionais. A fonte mais fácil de material de jogo é a Dungeon Master’s Guild, e nela a quantidade de material disponível em português é ínfima. O subreddit de D&D tem ideias e discussões fantásticas, que às vezes chegam ao Brasil traduzidas, em forma de artigo, e que nem sempre têm a profundidade da conversa original.

Consistência e comunicação

Retomando o que eu disse ali: ao manter todos os termos de jogo no original, ninguém se confunde ou fica na dúvida do que o colega está fazendo durante a sessão, e fica mais fácil de encontrar mais informações sobre determinada regra nos livros ou na internet.

Desvantagens

Vícios de linguagem

Isso é um problema que não afeta as pessoas durante a sessão, mas sim fora dela. Parando pra pensar não tem tanto a ver com o RPG em si, mas com qualquer jogo em que usemos muitos termos em inglês para descrever tudo. Seus amigos podem entender quando você disser que puxou o aggro de alguém, ou que saiu numa quest pra conseguir alguma coisa, mas sua vó, não. Pare de ser besta.

Esquecer termos em português

Por mais que Craft já tenha se tornado no neologismo craftar, existe um verbo para isso que não é muito difícil, em português: fazer. Assim como nível em vez de level, grupo em vez de party, jogador em vez de player ou história em vez de lore. É real, não é apenas durante o jogo: se você costuma jogar ou participar com bastante frequência de discussões online, com o tempo acaba substituindo os termos comuns pelos de jogo, até que chega um momento em que você fala assim com um civil e vai soar meio bobo. Pense numa versão rpgística do Português para Executivos.

Empobrecer o vocabulário

O oposto da vantagem de se usar termos em português. Ao escolher usar tudo em inglês, você perde a oportunidade de aprender termos no seu próprio idioma e enriquecer a sua própria fala. Pra quem tem pretensões de escrever livros² isso é sempre uma desvantagem, e das mais pesadas. Além disso, sempre que rpgistas são acusados de ser os nerd esquisito, e esses nerd esquisito querem defender o seu passatempo, falam aos quatro ventos “mas RPG promove a leitura!”, sem saber que comentários de YouTube não contam.

Barrar a entrada de novas pessoas

Volto a bater nessa tecla. RPG não é um passatempo muito comum. Agora que os jogos de tabuleiro contemporâneos estão ficando mais populares é que, aos poucos, as pessoas de fora do meio estão descobrindo que existem jogos cooperativos (ainda que tenha jogador que esqueça disso, também). RPG já é estranho. Se você vai explicar o jogo para um inocente, simplesmente não rola usar termos em inglês: vai acabar piorando a imagem de que é algo elitizado, pra um grupinho fechado. Isso nunca é legal.

Enquanto eu terminava de escrever esse artigo, vi uma publicação num grupo de D&D, de alguém dizendo “Sou novato no RPG. Alguém pode me dar dicas?”. Outros novatos responderam, dizendo “eu também”. Eram crianças. Em meio a comentários vagos de “leia os livros!” (aqueles de R$ 170 cada, lembra?), um me chamou a atenção. A pessoa enumerava seis itens para começar a jogar, e o primeiro deles era Tenha certeza que sabe o Básico do Inglês. Literalmente. Acho que meu ponto ficou claro, né?

Conclusões

Esses dois artigos são bem enviesados, e deixo a minha opinião bem clara desde o começo. Eu sou um educador. Por estar em contato constantemente com crianças e novatos que querem aprender a jogar, eu acho imprescindível manter o jogo em português, tornando ele o mais acessível possível para pessoas de qualquer idade e origem aprender como as coisas funcionam. É uma bolha que precisa se abrir.

Com o anúncio do lançamento da 5ª Edição em português, pela Galápagos Jogos, a democratização oficial do jogo pode se tornar real (caso os livros não custem R$ 200 cada um e a editora mantenha o suporte ao sistema, mas isso é outra história). Resta apenas ver como a comunidade vai agir diante disso, numa época em que o D&D e o RPG em geral estão numa espécie de auge da indústria cultural.


[1] É sempre bom lembrar que “guano”, um dos componentes materiais do feitiço, é só um nome bonito pra bosta (e que o mago de níveis altos deve ser uma catinga só na maior parte do tempo).

[2] É interessante que ninguém quer escrever contos ou novelas ou romances ou cenários. Querem escrever livros.