Eu acompanho diversas atividades de RPG graças ao meu trabalho, e tem uma coisa que sempre percebi: a presença de termos em inglês no meio do jogo. Sejam regras, nomes de habilidades ou tipos de personagem, sempre foi muito comum ouvir os jogadores falando de suas fireballs ou sneak attacks. Em grupos de Facebook, vejo falarem players em vez de jogadores, e com o passar do tempo isso foi me incomodando cada vez mais. Resolvi fazer um texto explicando meus pontos sobre esse incômodo, mas no final também faço o papel de advogado do diabo, e tento apontar o lado bom dos estrangeirismos.

O texto serve pra qualquer jogo, mas uso o D&D como exemplo por ser o centro das comunidades onde mais vejo isso ocorrendo. É importante frisar que essa é minha opinião quando se trata de jogar RPG em eventos, espaços educativos ou quando se fala sobre o jogo em comunidades e redes sociais. Nunca que eu vou querer palpitar na sua mesa de jogo. Cada grupo é livre para jogar como bem quiser. 🙂

Mas e aí: por que traduzir?

O gatilho deste artigo disparou há algumas semanas, num grupo no Facebook. Um jogador perguntou como ele poderia traduzir “tiefling”. No caso, ele simplesmente preferia usar um termo em português (o que eu acho mais do que válido), e que fizesse sentido dentro do jogo enquanto falasse o nome da raça. Eu acho esse motivo mais que o suficiente. Foram muitas das respostas a ele que me motivaram a escrever. “Tiefling não se traduz!”, “chama de diabinho!” e por aí vai. Ele queria traduzir porque queria uma palavra que soasse mais natural. Não sou um grande advogado do RPG como uma vivência teatral mágica na qual vou me tornar meu personagem (deus me livre), e fico com um pé atrás quando dizem que tal coisa “tira a imersão”, mas nesse caso eu apenas posso concordar. Não porque tira a imersão do jogo, mas porque algumas coisas me desconectam do que estou fazendo.

Vou tentar ser breve nisso aqui pro texto não ficar muito cabeçudo [comentário pós-revisão: eu não fui breve]: qualquer coisa que a gente jogue, de polícia-e-ladrão a Banco Imobiliário, pressupõe uma certa separação entre o mundo externo e o mundo de jogo. É como se uma cortina invisível deixasse a realidade do lado de fora, e naquele espaço interno só o contrato entre os jogadores é que determinasse o que é verdade.

Aí vem algo extremamente pessoal, e que sei que muita gente não concorda: pra mim, quando alguém na mesa usa termos em inglês durante o jogo, é como se essa cortina invisível estivesse sendo perfurada: me sinto puxado para fora desse espaço lúdico, porque aquela palavra falada em outro idioma me faz lembrar que aquilo é um jogo. Parece doido, né?

A questão é que a imersão que eu perco não é a da história que está se passando com meu personagem. É a imersão de estar jogando: de estar eu, Bruno, me desligando do mundo real pra me distrair. Algo que não tem a ver com o RPG em si, e sim com qualquer jogo. Seria como jogar Banco Imobiliário perdendo dinheiro de verdade.

Enfim, falar os termos em inglês me desconecta do que estou fazendo. Manter todas as coisas na minha língua nativa para mim é simplesmente natural. É claro que isso não se aplica a termos dentro da história caso, sei lá, a minha se passe na Inglaterra. Só me sinto estranho falando que “vou lançar burning hands¹. Dizer burning hands me remete às regras da magia e reforça essa sensação de desconexão. Por mais que “mãos flamejantes” também seja tecnicamente um termo do jogo, o fato dele estar no meu idioma faz com que ele seja natural na minha fala, o que não me causa essa quebra de mundo de jogo/mundo externo. Eu sei que ele é o nome de uma magia e que tem regras pra ela funcionar, mas “mãos flamejantes” me faz imaginar um feitiço legal antes de me fazer pensar nos efeitos dele no sistema. O mesmo não ocorre com burning hands.

Isso também vale para cenários de fantasia. Usando a escola Tolkien de tradução, eu considero todos os termos que sejam da “língua comum” do cenário como sendo a língua materna de quem está lendo. Então, caso esteja jogando uma campanha nos Reinos Esquecidos (Forgotten Realms), sempre vou preferir falar Águas Profundas, Lua Argêntea e Portal de Baldur, porque em Faerûn não se fala inglês: se fala Thorasta. Os nomes em inglês, no livro, seriam traduções desses termos de uma língua de Toril. Quando eu me deparo com algum nome que não esteja em Thorasta, eu sei que é pra ele ser diferente da minha língua materna, então uso o termo original, já que a ideia é que ele seja, justamente, incompreensível, como mythal, Myth Drannor, Menzoberranzan ou Mulhorand².

Em geral as traduções de Reinos Esquecidos são ótimas. Mas a do suplemento Fronteiras Prateadas ficou meio na dúvida quanto a um termo…

O mesmo não ocorre se eu for jogar, como disse lá em cima, uma história na Inglaterra. Eu não vou traduzir Hertfordshire, Derbyshire, Kent e Sussex enquanto estiver falando como personagem, ainda que provavelmente vá dizer Inglaterra em vez de England, e Londres em vez de London — novamente, o que eu acho mais certo é aquilo que soa mais natural.

Na mesa em que eu jogo D&D, nós usamos cartas de magia feitas em casa, o que facilita bastante o processo de escolher, preparar e conjurar cada feitiço. Os textos estão em português, feitos a partir do Documento de Referência do Sistema (obrigado, Aventureiros dos Reinos!) – usamos esse site aqui.

Também usamos fichas de personagens traduzidas, e mesmo que a edição oficial no Brasil ainda esteja para chegar, os termos no nosso idioma já existem em outras edições, o que não torna isso um problema. A ficha é o pedaço de papel que os jogadores mais olham durante a sessão, e só o fato dela estar na língua materna já deixa as coisas mais fáceis de manter tudo em português.

Sendo mais prático, vou enumerar possíveis prós e contras de usar apenas termos em português, ainda que você já saiba qual é a minha escolha.

Vantagens

Você aprende mais sobre seu próprio idioma

A língua portuguesa tem um monte de palavras que servem perfeitamente para substituir termos em outros idiomas. Eu tive um professor na faculdade que dizia que inglês conseguia exprimir melhor algumas coisas, e usou o exemplo de “huge” (grande), e de como o idioma permitia dizer “huuuuuge” para denotar algo ainda maior. Assim como a gente pode dizer… “enoooorme”, sabe?

Quando a Devir trouxe a quarta edição do D&D pro Brasil, lembro do celeuma que foi em fóruns em relação à escolha da tradução de alguns termos. Reclamaram quando traduziram ray of frost para “raio álgido”, em vez do tradicional “raio de gelo”, assim como hell hound virou “sabujo infernal”, depois de anos sendo chamado “cão infernal.”

Muitas vezes o motivo era “mas ninguém fala álgido no dia a dia!” ou “que diabos é um sabujo?”. Onde eu via uma oportunidade para se aprender algo novo, muitos viam um impedimento. Às vezes, é claro, é simplesmente hábito e ponto de vista. Mas foi com a 4E que eu aprendi o que era um sabujo – literalmente, a tradução de hound: um cão de caça.

HELL DOG não soa lá muito imponente, né?

O que eu digo de tudo isso é: uma palavra estranha no seu idioma ainda é uma palavra no seu idioma. Com certeza é mais válido aprender mais sobre ela do que simplesmente deixá-la de lado para usar um termo estrangeiro. A gente tem a simpática e desconhecida serpe, que em estrangeirês é wyvern. Para mim a nossa versão soa muito mais mitológica, por ser claramente um termo arcaico.

Aumento de vocabulário

Isso está intimamente ligado com o item acima. Quanto mais palavras novas você aprende, mais você sabe sobre a sua própria língua. Eu sei que é comum entre muitos rpgistas (eu incluso) a vontade de escrever contos, romances e um dia publicar seu próprio cenário. Escrever é sobre dominar as palavras; é um tipo de magia. Se você não praticar, acaba esquecendo seus feitiços.

Diminui alguns estigmas do jogo

Como todo bom passatempo dos nerds que gostam de se achar seres superiores só porque juntam pelos no pescoço, misoginia, livros e bonequinhos, RPG infelizmente acaba juntando uma comunidade bem tóxica em torno dele, algo que pode ser muito difícil de se lidar. Um iniciante que procura saber mais sobre D&D em um grupo de Facebook e tem alguma dúvida muitas vezes é recebido com um afável “vá ler o livro!”, ou então com pessoas chamando jogadores de players, grupo de party, personagens de chars ou falando de craftar coisas ou fazer testes de skill pra spotar os shambling mound³.

Dá pra entender o que acontece aqui? Ser receptivo inclui falar a mesma língua de quem está com problemas. Manter tudo em português deixa o jogo menos elitizado, facilita a comunicação e ajuda todo mundo a se entender.

“Mas Bruno, os livros estão em inglês!” Sim. E é aí que vêm as desvantagens.

Desvantagens

Encontrar termos de jogo é um saco

A meu ver, esse é o primeiro problema. Se eu uso cartas de magia, por exemplo, com todas as informações necessárias em português ali na minha mão, dificilmente vou consultar o livro em relação a isso. Mas se eu tiver alguma dúvida referente às regras do sistema, preciso traduzir a minha dúvida antes de ir pro livro. “Como é que tal perícia funciona?” Vai lá procurar em “Skills.” Mas aí que em lugar nenhum tem “Prestidigitação” porque é “Sleight of Hand” no original. O que leva à próxima desvantagem.

A comunicação com a comunidade fica com ruídos

Como D&D 5E ainda está para chegar no Brasil, o grosso do material que vem até aqui está em inglês, importado. Os grupos de Facebook muitas vezes discutem construção de personagens e regras usando esses livros, e raramente alguém traduz termos de jogo nesse caso, corroborando com o que eu disse ali em cima: as pessoas devem falar a mesma língua pra se entender. No caso, a língua dos livros de D&D 5ª Edição ainda é o inglês, e se você decorar apenas os nomes traduzidos das coisas, muitas vezes pode ficar perdido caso entre numa discussão na internet.

É mais difícil pesquisar coisas novas sobre o jogo

Novamente, se os livros estão em inglês, todo o material compatível com eles tenta estar de alguma forma na mesma língua. Quer novas magias, ou novos antecedentes pro seu personagem? Vai ter que procurar por spell lists e backgrounds. É claro que isso muda de figura com a existência do DRS, mas esse documento tem apenas as regras básicas, o que não serve de muita coisa se estiver procurando modificações feitas pela comunidade.

Opa que o texto ficou longo

A ideia era trazer os argumentos a favor e contra a tradução dos termos em um único texto, mas para variar me empolguei e escrevi demais. Por enquanto, paramos por aqui. Na semana que vem eu assumo o manto de advogado do Outro Lado e venho aqui fazer o exercício mental de defender os termos originais acima de tudo.

Enquanto isso: o que você e o seu grupo costumam fazer durante o jogo? Mantém no original? É tudo em português?

Ou melhor, é full pt-br?

Continuação do artigo: Termos de D&D em inglês: por que não traduzir?


[1] Pra não dizer castar, que sempre que ouço tenho um aneurisminha. “Castar” só me faz pensar em colocar alguém no sistema de preconceito institucionalizado da Índia.

[2] O porquê de eu só ter lembrado de termos começado com M será sempre um… Mistério.

[3] Exemplos reais. Ainda dói.