Já vi muitas pessoas fazerem essa pergunta, em diversos grupos do Facebook. Pra gente, que joga há bastante tempo, pode parecer até bem simples de responder: “Ué, escolhe um livro, tenha os dados, e jogue”. Mas com o tempo nós nos esquecemos, ou deixamos de perceber, o quanto RPG pode ser um hobby complexo de se explicar e de se entender.

Mas afinal, o que é esse jogo que tanta gente comenta? A tradução direta para o significado da sigla é Jogo de Interpretação de Papéis (Role-Playing Game). Nele, um grupo de jogadores se reúne para contar uma história colaborativamente. Um dos jogadores assume o papel do Mestre, ou Narrador, e fica responsável por delinear os principais eventos dessa história, propor desafios para os outros jogadores e interpretar os personagens coadjuvantes. Cada um dos outros jogadores tenta superar os desafios propostos pelo Mestre, enquanto explora o mundo do jogo sob o ponto de vista do personagem que criou para si. Os desafios são resolvidos com estratégia e sorte, sob a forma de combinações de habilidades definidas nas fichas dos personagens e na aleatoriedade das rolagens de dados. É um jogo de imaginação e colaboração, onde todos trabalham juntos e a recompensa é uma história que poderá ficar na memória de todos por anos e anos.

Para um novato que chega em um grupo ou comunidade já estabelecida, os termos frequentemente utilizados pelos jogadores podem soar estranhos ou até mesmo incompreensíveis. Ainda mais quando temos tantos anglicismos e neologismos envolvidos. Mas não vim falar sobre isso hoje. Não muito, pelo menos.

Começar a jogar RPG é bastante simples. Na verdade, difícil é imaginar que você nunca tenha tido nenhum contato com algo influenciado por ele. Com 44 anos desde a criação de Dungeons & Dragons (D&D), o primeiro título publicado comercialmente do gênero, o RPG teve tempo o suficiente para se fazer presente em várias obras da cultura pop. Ele está no cinema, como referência em E.T. – O Extraterrestre, ou como aquelas adaptações sofríveis do jogo para filmes próprios. Está em Gravity Falls, Apenas um Show e Hora de Aventura. Em episódios de Community e The IT Crowd.

Abed mestrando AD&D em Community (Temporada 2, Episódio 14).

Suas influências se espalharam também por grande parte dos jogos eletrônicos. Se você já “passou de nível” em algum jogo de reorganizar pedrinhas preciosas na tela do celular, já teve contato com um pouquinho do RPG. Pode parecer bobagem, mas ele realmente se espalhou por todos os lugares.

Mas voltando ao título, como começar a jogar RPG? É preciso comprar muita coisa? O investimento inicial (parece até chique falar assim, não?) é muito alto? Existe material de qualidade, acessível e com baixo custo?

Vamos por partes. O RPG pode ser tão complexo ou tão simples quanto você desejar. Existem diversos conjuntos de regras, que chamamos de Sistemas. O Dungeons & Dragons, que eu citei lá em cima, surgiu como um sistema que favorecia jogos em uma ambientação de fantasia, trazendo regras para a criação de guerreiros, magos, ladrões, clérigos, anões, elfos e halflings (pense nos Hobbits de O Senhor dos Anéis). Hoje, o jogo está em sua 5ª edição, cuja publicação em português foi anunciada há poucos dias pela Galápagos Jogos. Para jogar D&D tendo a experiência completa, recomenda-se adquirir os três livros básicos do sistema: o Player’s Handbook, Dungeon Master’s Guide e o Monster Manual (deixei os nomes em inglês, mas nas edições anteriores eles foram traduzidos respectivamente como: Livro do Jogador, Guia do Mestre e Manual dos Monstros). Lançada em 2014, é bastante comum encontrar esses livros com preços promocionais na Amazon. Mas você precisa ter uma compreensão boa do inglês para ler os livros da melhor maneira possível.

Uma opção, ainda tratando do D&D, é o Starter Set (algo como “Conjunto Introdutório”). Esse material consiste em uma caixa com cinco personagens prontos, um livreto de regras resumidas que ensina a jogar e avançar esses personagens até o nível 5, um livreto com uma aventura introdutória bastante extensa e abrangente, e o essencial kit de dados multifacetados. Aliás, é importante falar que vários títulos de RPG necessitam desses dados específicos. Já foram mais difíceis de achar, mas hoje podem ser facilmente comprados pela internet ou em lojas do ramo.  O D&D usa dados de 4, 6, 8, 10, 12 e 20 lados. Que loucura, não?

Os bonitos, caso não conheça. (Veikk0.ma/Wikipedia Commons).

Recentemente a Devir Livraria começou a publicar os livros de Pathfinder em português. O sistema é baseado na licença aberta de uso das regras de D&D 3ª edição, com diversas modificações e melhorias, e tem uma grande comunidade de jogadores.

Ah, gloriosos anos 1990…

Outros sistemas de regras podem apresentar propostas diferentes. Nos anos 1990 o sistema Storyteller, publicado pela White Wolf, se tornou um dos principais concorrentes do D&D, trazendo ambientações mais ligadas ao horror pessoal e ao que hoje podemos chamar de realismo mágico ou fantasia urbana. Seus principais títulos eram Vampiro: A Máscara, Lobisomem: O Apocalipse e Mago: A Ascensão, com menção honrosa para Changeling: O Sonhar. Cada um desses livros continha as regras do sistema, que diferiam sutilmente entre eles, e as propostas de ambientação, com uma proposição de uma grande trama, abordada de maneiras diferentes por cada título. Há quase 15 anos, a linha sofreu uma reformulação e ganhou uma nova abordagem, tendo um livro básico lançado, o Mundo das Trevas. Este livro trazia as regras principais do sistema, e possibilitava a narração de histórias envolvendo personagens humanos. Cada um dos títulos antigos ganhou uma nova roupagem, e foram publicados os livros Vampiro: O Réquiem, Lobisomem: Os Destituídos, Mago: O Despertar, entre outros. O sistema passou a se chamar Storytelling (uma mudança tão pequena que causou confusão na cabeça dos jogadores por um bom tempo), mas se manteve usando apenas dados de 10 lados, e tendo regras mais abertas ao improviso e bom senso do narrador e dos jogadores.

Mas Leo, esses livros todos são muito velhos, onde eu vou encontrar pra vender? Calma gafanhoto, vamos chegar lá (boatos que eu me empolguei na história aqui e me perdi).

Não me perdi, não (migué). Quis falar sobre esses dois sistemas distintos para mostrar que existem diferentes abordagens e propostas sobre o RPG. Enquanto o D&D originalmente prezava mais por histórias simples e aventuras onde os personagens invadissem calabouços, derrubassem as portas e esmagassem a fuça dos monstros contra uma parede de chapisco, os títulos da White Wolf ofereciam possibilidades de histórias onde os dramas pessoais de cada personagem fossem as linhas condutoras. Claro que isso nem sempre deu certo, mas pelo menos trouxe algo novo para o gênero, possibilitando o surgimento de livros com propostas ainda mais diferentes.

Alguns dos sistemas de RPG brasileiros surgem nessa época de efervescência de títulos e propostas. É o caso do 3D&T, que surgiu como D&T, um conjunto de regras para jogos com temáticas voltadas para paródias de animes e tokusatsus (oi, vocês ainda sabem o que é isso?), chamado Defensores de Tóquio. O sistema recebeu, e ainda recebe, suporte dos autores através das publicações da revista Dragão Brasil, onde aos poucos foi sendo criado o cenário de campanha chamado Tormenta, que por sua vez fez com que as regras se tornassem mais genéricas e dessem suporte a outros tipos de histórias. A principal característica de 3D&T que me vem à mente quando o menciono, é o fato de ter sido lançado com formato do tipo revista, com preço baixo , e disponibilizado em bancas de jornal. Isso o tornou extremamente acessível e popular na época em que foi lançado. Outro fator que contribuiu para a sua popularização foi o uso apenas de dados comuns de 6 lados. Muitas vezes joguei 3D&T improvisado com amigos, puxando regras da memória e usando dados do War (qual é, todo mundo tem dados do War em casa). O sistema 3D&T possui uma versão atualizada, o 3D&T Alpha (talvez o sistema tenha tantas versões quanto Street Fighter II), cujo livro básico é distribuído gratuitamente em formato digital no site da editora Jambô.

Tormenta, o cenário de campanha que nasceu na Dragão Brasil, logo pôde fazer uso do sistema de regras do D&D 3ª edição, que permitia o uso comercial da maior parte  de seu conteúdo por terceiros, a partir de um documento relativamente complexo de se explicar, que eu vou deixar para um outro momento. Isso tornou possível o lançamento de livros básicos com regras e suplementos com ambientação e outros conteúdos para o jogo. Tormenta também recebe suporte até hoje, e com frequência ganha novos títulos e revisões. Você com certeza vai encontrar jogadores devotos do cenário com facilidade na internet.

Também é possível procurar pelos jogos independentes, frequentemente lançados por editoras pequenas, mas dedicadas. Muitos são publicados com o auxílio de financiamento coletivo, e acabam formando comunidades apaixonadas de fãs.

Um desses é o Goddess Save the Queen que, apesar do nome em inglês, é um jogo nacional publicado pela Redbox Editora. A proposta é que os jogadores assumam os papéis de personagens femininas especialistas em espionagem, combate e exploração, entre os anos de 1920 e 1930. As personagens aqui tem como missão investigar, localizar e neutralizar artefatos antigos e supostamente poderosos. Regras específicas e uma proposta de narrativa focada fazem desse jogo uma experiência bastante interessante.

Outro título brasileiro, que se aproxima muito da experiência do sistema original do D&D, é o Old Dragon. Também publicado pela Redbox, seu livro básico é gratuito para download no site, uma vez que você se cadastre para receber a newsletter da editora. É uma excelente opção para quem quer ter o gostinho do D&D, mas não quer, ou não pode, desembolsar quase R$200,00 por livro importado. Old Dragon também faz parte de um movimento que vem ganhando força no cenário internacional do RPG, que é o OSR – Old School Renaissance (algo como Renascimento da Escola Véia). O OSR preza pela maneira antiga, e mais simples, de se jogar RPG. Sistemas com regras mais leves e ambientações mais duras, onde o jogador projeta mais das próprias ideias sobre os personagens. Mas isso também é assunto para uma conversa futura.

Certo, falamos de alguns livros e sobre os dados. O que mais é necessário para começar a jogar?

“Quem precisa sair de casa? Eu tenho Critical Role.” (Daqui).

Gente, RPG é um jogo social. Você precisa de um grupo de jogadores para poder jogar. Normalmente, um narrador mais três a cinco participantes é uma quantidade ideal de jogadores. Isso pode parecer assustador para alguns de vocês, leitores. Mas hoje, é muito mais fácil encontrar essas pessoas.

Quando eu era criança, e já jogava RPG, mudei de cidade e tive que recomeçar o meu grupo. Na época não tínhamos uma rede social como o Facebook para facilitar a comunicação entre essas pessoas, então eu meio que fui abordando os novos colegas de escola NA CARA E NA CORAGEM. Eu sempre fui bastante comunicativo, então não foi um problema muito grande, mas quem é mais tímido pode relutar em chegar nas pessoas perguntando “e aí, tá afim de socar uns orcs diferenciados?” e correr o risco de ser amarrado em um poste por algum bobalhão com 15 cm a mais de altura e alguns neurônios a menos. Hoje, porém, temos uma ferramenta incrível ao nosso alcance. O Roll20 é um site que permite jogadores se conectarem, criar suas fichas de personagens e rolar dados em um ambiente virtual. Então mesmo que você more numa cidade pequena, sem lojas especializadas ou uma comunidade de jogadores identificável, você pode conhecer pessoas nos grupos do Facebook, narrar ou participar de algum jogo proposto por outra pessoa, e de quebra ainda fazer alguns novos amigos.

Enfim, resumindo. Você vai precisar de um sistema, um conjunto de dados (ou algum aplicativo de celular que simule as rolagens) e um grupo de pessoas interessadas no jogo. Além disso, alguns papéis, lápis e borracha para criar os personagens e anotar nomes e termos importantes durante o jogo. Também pode ser necessária uma mesa relativamente larga, já que com o tempo você vai perceber que um jogo de RPG pode ocupar bastante espaço. Ou se preferir, uma conexão boa com a internet e um conjunto de fones de ouvido com microfone para poder jogar em plataformas online.

Dada a existência de sistemas e aplicativos roladores de dados gratuitos, hoje é possível começar a jogar RPG gastando quase nada de dinheiro. Talvez alguns centavos com cópias ou impressões de fichas.

Divirta-se, e comente com a gente como foi a sua primeira experiência jogando!

 


Brevíssimo glossário de termos comuns

Aventura – É uma história contada pelo grupo, algo como a unidade básica de um jogo de RPG. Pode se desenvolver em uma única partida, ou em várias.

Campanha – Várias aventuras em sequência e interligadas. Às vezes uma campanha leva meses ou até mesmo anos para ser concluída.

Cenário de Campanha – Geralmente vem dividido entre livros básicos e suplementos. Os cenários de campanha nada mais são do que ambientações prontas para uma série de aventuras. Um mundo já construído, com pontos de interesse previamente destacados por seus criadores para que os mestres e jogadores possam economizar um pouco de trabalho na hora de jogar.

D4, d6, d8, d10, d12, d20 – Os dados multifacetados costumam ser abreviados de acordo com o seu número de lados, como d#. Um d12 é um dado de doze lados, d6 é um dado de seis lados. Jogar 8d6 significa rolar oito dados de seis lados (algumas ações no RPG fazem a gente se sentir como se estivéssemos jogando búzios). Quando vemos algo como 3d8+2, significa que devem ser rolados 3 dados de 8 faces, e ao resultado se adiciona 2.

Ficha de Personagem – Geralmente é uma planilha onde as características do personagem são anotadas, bem como os itens que ele possui e pode utilizar durante uma aventura.

Interpretação – Diferente do teatro, interpretar um personagem no RPG não requer tanta habilidade. Na verdade, se refere mais a orientar as ações do mesmo de acordo com o que foi estabelecido na ficha e na descrição desse personagem. Um personagem heroico bem interpretado, por exemplo, provavelmente deveria se preocupar mais com salvar as pessoas do incêndio na estalagem do que, durante o incidente, procurar o que começou o fogo.

Jogador – Todos os participantes do jogo são Jogadores. Mesmo o Narrador é um deles, que assumiu uma responsabilidade um pouquinho maior. Mas geralmente, quando um livro fala de jogadores, se refere aos que interpretam um único personagem.

Livros básicos – Manuais com as regras necessárias para se jogar determinado sistema.

Mestre do Jogo – Adaptação do termo original Dungeon Master, o Mestre do Jogo nada mais é do que o jogador responsável por organizar os acontecimentos e interpretar os personagens coadjuvantes. Também chamado de Narrador.

Nível – Boa parte dos sistemas categoriza o poder dos personagens em níveis, que geralmente são alcançados com Pontos de Experiência. Aliás, por algum motivo obscuro tem gente que fala level e não nível, que é o termo em português, e de tão fácil compreensão quanto o original em inglês. Daria pra evitar as variações como LEVELAR também, que são ligeiramente abomináveis e te deixa pensando se a pessoa foi vacinada. Falar “subir de nível” é mais que suficiente.

NPC – Sigla para o termo em inglês Non-Player Character. Traduzido como Personagem Não-Jogador ou ainda Personagem do Mestre. Se refere aos personagens coadjuvantes interpretados pelo Narrador.

One-shot. Algo como “de uma vez só” ou “numa tacada só.” São aventuras que não tem o compromisso de continuar na forma de uma campanha, começando e terminando em uma única sessão. É um formato bastante comum em eventos, onde os narradores costumam levar personagens prontos, que os jogadores escolhem para aquele jogo.

PCPlayer Character, ou Personagem do Jogador (PJ). Veja Personagem.

Personagem – É o Personagem interpretado por um jogador. Também chamado de PJ, Personagem Jogador. Cada sistema propõe maneiras diferentes de se criar e interpretar um personagem.

RAI – Termo muito comum em grupos do Facebook quando alguém está tirando dúvidas sobre regras específicas. Significa Rules As Intended. Algo como “Como as Regras Deveriam Ter Sido Explicadas”. Isso acontece porque muitas vezes as regras são escritas de forma abrangentes ou superficiais, e permitem interpretações que não deveriam.

RAW –  Similar ao anterior, significa Rules As Written, ou “Regras Como Foram Escritas”. Se refere ao que está escrito no livro em questão, pura e simplesmente.

Sessão de Jogo – Ou simplesmente, uma partida. Durante uma sessão de jogo, nem sempre uma aventura é concluída. A duração de uma sessão pode variar bastante, mas algo entre três e quatro horas talvez seja o mais comum, considerando o tempo de jogar conversa fora e a demora pra escolher o sabor da pizza.

Sistemas – Conjuntos de regras de jogo, que privilegiam histórias em ambientações ou propostas específicas. Exemplos: Dungeons & Dragons favorece histórias heroicas cheias de magia, Vampiro: O Réquiem lida com mecânicas que reforçam o horror pessoal e o peso narrativo das decisões tomadas, 7º Mar tem regras que estimulam efeitos dramáticos cinematográficos e cheios de ação.

Sistemas Genéricos – Conjunto de regras mais amplas, que podem ser utilizadas para qualquer tipo de ambientação. Alguns exemplos incluem 3D&T, Savage Worlds, GURPS e Fate. Ainda que eles permitam qualquer tipo de cenário, é comum que sistemas genéricos foquem em tipos de narrativa. 3D&T é mais escrachado, Savage Worlds é rápido e dramático, GURPS pode ser usado para cenários com bastante realismo e Fate propõe uma maior participação dos jogadores como “diretores de cena” durante a sessão de jogo.

Suplementos – Livros que apresentam material suplementar às regras. Podem ser detalhes sobre um cenário, uma aventura pronta, regras opcionais. Não são potes de Whey Protein. Pense mais em expansões de jogos de tabuleiro, ou DLCs de jogos eletrônicos. Esses danadinhos aqui são a origem disso, para o bem ou para o mal.

Teste – O elemento básico de jogabilidade do RPG. Tudo o que não pode ser resolvido através da interpretação, exige um teste. Esse teste nada mais é do que rolar um ou mais dados, que normalmente se relacionam a algum valor especificado na Ficha do Personagem e comparar a um número alvo.

XP – Não, não é um emoji. É uma abreviação muito comum para o termo Experience Points, ou pontos de experiência. Você já deve ter visto esse termo em vários lugares. Serve para medir e quantificar o aprendizado e o avanço de um personagem ao longo de uma aventura.