Detalhe da capa de Ten Candles. Arte de J. C. Park.

Há dez dias o céu os traiu.
O mundo escureceu. O sol desapareceu.
Vocês estavam sozinhos.

O afundar no caos foi abrupto e previsível. O mundo foi tomado por medo e tumultos. O rádio prometia que o sol não havia sumido, e que ainda estava lá além daquele véu negro.

A ordem voltou.

Cinco dias atrás, Eles chegaram.
Agora as rádios prometem um resgate que nunca vem. Agora as luzes tremulam e a escuridão é onde Eles caçam.

Agora você ouve os gritos.
Agora eles estão vindo para você.
Continue andando. Não perca a esperança. E fique na luz.

Eu jogo RPGs há quase 16 anos¹. Foi apenas neste último ano que me aventurei nos jogos narrativos, em que o objetivo maior é contar uma história coletivamente, e não exatamente interpretar personagens numa história coletiva. A diferença maior desse tipo de jogo (pelo menos no meu entender) é que os jogadores têm maior domínio sobre a narrativa em si, e passam a maior parte do tempo fora do papel de algum personagem, comportando-se mais como autores.

Ten Candles (“Dez Velas”) é um jogo desse tipo, ainda que se defina como RPG. Ainda há um mestre de jogo, como num RPG: um jogador que faz o papel de personagens secundários e apresenta problemas, mas aqui o seu papel é muito mais de mediador, decidindo os momentos em que as regras devem ser aplicadas. Todas as histórias em Ten Candles são únicas, mas partem do mesmo cenário: há dez dias, o mundo escureceu. Algo ou alguém tornou a atmosfera de um negro absoluto; não se vê mais o sol, a lua ou as estrelas, e todas as comunicações via satélite deixaram de existir.

Há cinco dias, Eles chegaram.

O objetivo dos jogadores e do mestre é o de contar a história de um grupo de pessoas nos seus últimos momentos de vida. Desde o começo, é necessário que todos os participantes saibam que todos os personagens irão morrer no final, sem exceções. O autor, Stephen Dewey, define Ten Candles como um jogo de horror trágico, e não de horror de sobrevivência. A diferença é que neste último ainda há esperança de alguém sair vivo no fim da história, o que não é o caso aqui.

Mas qual é a graça de jogar um jogo em que eu sei que meu personagem vai morrer no final?

Toda. O jogo simplesmente não funcionaria se não houvesse a morte definitiva. A história que deve ser contada é sobre os estertores da vida desse grupo de pessoas, e o drama simplesmente não seria o mesmo se alguém pudesse “vencer”. Todos os jogadores vencem no final, ao terminar a história. Ainda que saibam que suas personagens serão mortas, todos devem agir durante a sessão como se elas tivessem alguma chance de sobrevivência.

A mecânica do jogo é onde a sua essência brilha. O jogo começa com dez velas acesas em torno de algum objeto onde os jogadores possam queimar papel. Cada vela representa uma cena que vai acontecer. Além disso, dez dados de seis faces (d6) de uma mesma cor, e um punhado de d6 de cores variadas. Cada personagem é composto por quatro elementos: um Vício, algo que pode lhe causar problemas; uma Virtude, algo que pode lhe ajudar a resolver problemas; um Momento, algo que o motiva a continuar e, por fim, um Limiar: alguma coisa (geralmente terrível) que ele é capaz de fazer, e que apenas um outro jogador da mesa sabe.

Arte de J. C. Park.

Conforme os personagens são construídos, as velas são acesas de pouco a pouco.

Cada um desses elementos (o mais próximo que o jogo tem de uma ficha de personagem) é escrito num pedaço de papel, e pode ser queimado à medida que o jogo avança e determinados estágios da história são alcançados. No geral, os papéis vão para o fogo para rerrolar dados problemáticos.

Antes de começar a primeira cena, é necessário o uso de um gravador (usamos um aplicativo). Cada jogador, falando na voz do seu personagem, deve gravar uma mensagem final antes de começar a narrativa, deixando um alento para alguém. Uma mensagem de despedida para um amado, um recado de até logo para a avó, qualquer coisa.

O sistema das velas é perfeitamente casado com os dados que os jogadores rolam. Se há dez velas acesas, há dez dados disponíveis. Essa parada de dados é coletiva, não determinada pelas habilidades dos personagens, e sim pela luz que resta na história. Na primeira cena, a qualquer momento que alguém decida fazer algo que o mestre julga necessário um teste, todos os dez d6 são jogados.

Se houver pelo menos um 6, o teste resulta num sucesso, o que significa que o controle narrativo passa para o jogador, que determina todo o resto do que quer que esteja acontecendo. No entanto, cada dado que tem 1 como resultado é removido do jogo até o fim da cena, o que torna os testes subsequentes cada vez mais difíceis. Caso o jogador queime uma de suas características, e a incorpore na cena de alguma forma, ele pode rerrolar todos os 1 e recuperá-los para o grupo, caso o resultado seja 2 ou mais.

Em qualquer falha, a cena termina imediatamente. O mestre diz o que acontece, uma vela é apagada e uma nova fase de transição começa: Estabelecendo Verdades. Ela começa com o mestre dizendo:

Essas coisas são verdade.
O mundo escureceu.

Em seguida, cada jogador diz um fato que se torna verdade na história. Seria o momento de transição de cenas em um filme: se a cena anterior terminou com os personagens procurando abrigo, alguém pode dizer “Encontramos uma casa”, e outro “E ela estava vazia”, “Mas encontramos comida”, e assim por diante. São faladas tantas verdades quanto há velas acesas.

Ao terminar de estabelecer verdades, todos os jogadores falam em uníssono:

E nós estamos vivos.

Essa frase ritual é repetida toda vez, e se torna cada vez mais tensa a cada cena que se encerra.

Conforme o jogo avança, o número de dados que os jogadores têm diminui, e é passado para o mestre. A partir de então, cada vez que um teste é feito por um personagem, o mestre também rola os d6: se ele tiver mais resultados 6 que o jogador, ele se apodera do controle narrativo. O sistema dá alternativas para os jogadores queimarem outras características, e até mesmo apagar velas, para serem novamente donos da história, mas o que acontece tem a ver com o ritmo da história: quanto mais ela avança, mais velas são apagadas, e menos domínio e esperança sobre o que está acontecendo os personagens têm. Aliás, há também os dados de Esperança (aqueles coloridos, separados) que em alguns momentos podem ser recebidos: quando caem em 1, são falhas, mas não são descartados.

Nossa mesa logo antes de começar a sessão. Cores alegres e vibrantes e esperançosas.

Ah, talvez seja uma boa hora pra dizer que Ten Candles é jogado no escuro.

Quando o jogo está nas últimas cenas, o mestre quase sempre ganha controle narrativo e retoma as rédeas da história, representando o cerco que Eles criaram em torno do grupo de personagens. Em momento algum o jogo esclarece quem ou o quê são Eles, e é o tipo de coisa que deve surgir em cada narrativa. Como toda boa história de horror, quanto menos se souber Deles, maior é o medo. Inclusive, o texto aconselha o mestre, lembrando que sua principal função durante a sessão é a de causar terror entre os jogadores.

Em determinado momento, quando jogamos (eu estava narrando), falei que um Deles estava afiando as garras do outro lado de uma parede de madeira. Ao mesmo tempo, raspei as unhas embaixo da mesa onde estávamos, e um dos jogadores reclamou levemente disso logo depois da sessão (sucesso).

Na última cena, toda falha representa a morte do personagem. O jogador é mais ativo nessa falha, e pode descrever, com a ajuda do mestre, como é o final de sua história. Até que o narrador pronuncia as últimas frases:

Essas coisas são verdade.
O mundo escureceu.

A última vela é apagada.

A gravação, do início da sessão, é tocada; de preferência, sem que os jogadores percebam que isso vai acontecer – reparei que duas ou três horas depois de ter começado, é comum esquecer desse momento lá do início do jogo.

No geral, o jogo é muito, muito imersivo. Começa curioso, e conforme avança as coisas vão piorando e a esperança deixa de existir. As velas apagando aos poucos, os barulhos eventuais da rua ou do seu cachorro latindo do nada, tudo colabora para o clima fúnebre. No entanto, nada se compara a ouvir a gravação. Ela é o ápice do horror trágico, e faz todos pensarem em todas as desgraças que aconteceram logo depois daquela despedida ter sido registrada.

Ten Candles é um jogo incrível, e só consigo dizer uma coisa: jogue. Experimente. Talvez a sua primeira sessão tenha problemas com as regras (a nossa teve alguns, o que acredito ser normal), mas é questão de se acostumar com esse tipo de proposta. Fora isso, por mais legal que seja, também tenho certeza de que não é pra qualquer um, e que talvez não funcione pra qualquer grupo de pessoas: como é uma narrativa compartilhada, todos têm que estar na mesma sintonia, para ninguém começar a aloprar a história e transformar um horror trágico num Todo Mundo em Pânico.

Levando em consideração que alguns de nós dormimos mal durante a noite, talvez demore um pouco até a próxima sessão dessa maravilha.

Nossa mesa na metade do jogo. Se alguma vela é apagada por acidente, ela permanece apagada.

Ten Candles foi lançado em 2016 via Kickstarter, e hoje pode ser encontrado à venda no site da sua editora, a Cavalry Games. A versão digital custa US$ 10, enquanto a impressa custa US$ 28. Todas as regras cabem numa folha A4 – eu fiz um resuminho pra me ajudar a mediar o jogo -, e dificilmente você vai consultar o livro enquanto joga, então um PDF é mais que suficiente (e muitos dinheiros mais barato).


[1] É a primeira vez que eu parei pra fazer essa conta e de repente me senti muito velho.