No texto anterior sobre nomenclatura em mundos secundários, foquei nos nomes de lugares, e em como podemos nos aproximar das suas origens e significados na hora de pensar em uma toponímia consistente. Lá, falei por alto sobre como é importante pensarmos nas pessoas que habitam os lugares, e em como as características desses povos acabam transparecendo nos títulos das suas cidades, estradas e ruínas abandonadas.

Partindo dos mesmos princípios, e continuando a discussão, hoje vou tentar apontar algumas abordagens que podem ser usadas na hora de escolher nomes de personagens. Em termos práticos, talvez esse artigo seja mais útil para narradoras de RPG e para escritoras, ou seja, pessoas que estão lidando com um grande número de nomes e que precisam pensar em como deixá-los interessantes e críveis entre si. Boa parte do que eu vou falar se refere a criar nomes de gente do nosso mundo. Em um próximo artigo vou me dedicar de maneira obsessiva-compulsiva sobre criação de línguas de nomenclatura, então segura as pontas.

Abordagens ao criar nomes

Significado como natureza do personagem

Essa talvez seja a maneira mais rápida e fácil de pensar num nome de personagem: pegar um dicionário de significados de nomes e ir atrás de algum que signifique o que queremos. Temo que também seja a mais suscetível a gerar nomes meio… bobos, caso as escolhas sejam óbvias demais. Quer dizer, se meu protagonista é um guerreiro destinado a feitos grandiosos, posso chamá-lo de Luís (“lutador famoso”) sem problema, mas colocar nele o sobrenome Guerra talvez seja um pouquinho demais. Da mesma forma, uma grande mediadora de conflitos pode se chamar Irene (da antiga religião grega, Eirene, a personificação da paz), mas Dona Pacífica talvez seja forçar a barra.

A maior parte das pessoas não conhece origens de nomes a fundo, então usar esses significados para criar os dos personagens pode ser uma mão na roda para quem está criando eles.

Radicais e outros elementos linguísticos

Quando se trata de mundo secundários, ou em histórias que lidam com o maravilhoso, podemos pensar em coisas mais específicas na hora de criar nomes: brincar com radicais. Ir a fundo na origem das palavras e criar a partir delas. Isso envolve uma pesquisa mais robusta em etimologia, o estudo da origem e transformação das palavras, mas o resultado vale a pena. Um exemplo bem fácil que chegou ao português foi Cinderela. O nome que se popularizou aqui graças à Disney vem do inglês, cinder (cinzas) + ella, um sufixo do latim.

É nóis que voa, bruxão. © 2011 Warner Bros. Harry Potter Publishing Rights (c) J.K. Rowling.

Outro famoso na fantasia é Voldemort, do francês vol de mort, literalmente “voo da morte.” Esse tipo de construção pode ser meio perigosa. Não consigo imaginar muito bem como o nome do vilão de Harry Potter deve soar para ouvidos franceses, mas talvez se aproxime da sensação que tenho ao ler “Castelobruxo”: faz sentido, eu entendo, mas é muito esquisito.

Sonoridade, trocadilhos e coisas escondidas

O protagonista de Lobo de Rua, da Jana Bianchi, é um menino de rua chamado Raul, que contrai a maldição da licantropia. Se a gente for até o fim da linha dos significados etimológicos, a sementinha do nome vem do nórdico arcaico Ráðúlfr, que por sua vez deriva de dois radicais proto-germânicos: *rēdaz (conselho, auxílio) e *wulfaz (lobo). O curioso sobre o personagem é que a Jana batizou ele pela sonoridade, que lembra um uivo, e pelo significado (porque lobisomem), porém a Fernanda Castro, ao resenhar o livro lá no The Bookworm Scientist,  apontou algo que a autora não havia pensado: “Raul” é “Luar” ao contrário.

Esse é um exemplo fascinante que conseguiu juntar muita coisa em um só nome. Partir de sonoridade muitas vezes ajuda na hora de pensar em nomes para mundos secundários, quando vamos criar nomes do zero em línguas que não existem.

Há autoras que preferem criar nomes que escondam coisas. Você pode fazer isso usando anagramas de palavras significativas, ou algo que pode ser uma pista para algo que o leitor pode descobrir na história.

Mas falando em sonoridade, em termos práticos, o nome do protagonista tem que ser agradável. É uma das palavras que o espectador mais vai ouvir ao longo da história, então o cuidado com ela é essencial. A sonoridade em si não deve ser pensada para os nomes individualmente. Ela envolve os nomes de todas as pessoas que interagem entre si num diálogo, e uma história em prosa pode desandar feio caso as coisas não encaixem direito. É importante pensar em todos os nomes e ver se eles soam bem juntos.

Quando a gente parte pra um jogo de RPG, é muito fácil as trombetas do apocalipse onomástico soarem: um grupo de personagens formado por Elathra, Admos, Laena e Roberval me faz revirar no caixão, e eu ainda nem morri.

Idiomas

Isso vale, acredito, pra quando vamos criar nomes baseados em outras línguas, ao criar histórias que se passem no nosso mundo ou em mundos secundários que tenham inspiração em outras culturas. Nesse caso, podemos ter duas abordagens: primeiro, pesquisar nomes de verdade, ver seus significados e sonoridade e usá-los. Essa é boa para histórias que se passem aqui mesmo. No segundo caso, mais adequado para ficção fantástica, podemos usar o bom e velho Google Tradutor, pensar num significado do nome do personagem, mandar traduzi-lo pro idioma que queremos e fazer ajustes para adequá-lo ao que precisamos.

Em todo caso, é importante manter consistência no que se refere às origens desses personagens. Pessoas que venham todas de determinada região provavelmente terão nomes advindos da mesma língua. Isso ajuda a dar uma cara mais verossímil pro que estivermos criando.

Referências

Em Camelot Trigger, mitos arturianos inspiram mechas em batalhas espaciais. © Brett Barkley, Evil Hat, 2013.

Artur para um rei predestinado pode ser meio forçado. No entanto, usar referências a histórias bastante conhecidas também pode ser uma forma do leitor se identificar com um arquétipo, o que pode ajudar o escritor a incrustar uma ideia na cabeça de quem lê. Você também pode se divertir horrores com esse tipo de coisa ao trabalhar com narrativas diretamente inspiradas em outras: Camelot Trigger, um cenário de ficção científica para Fate, reconta as aventuras dos cavaleiros da Távola Redonda imaginando-os numa expansão do sistema solar. Uma vilã robótica chamada MerGN-A ameaça os planetas, enquanto MerLN, uma inteligência artificial, serve de guia para os heróis. Ainda somos apresentados ao Project MORDRED, um clone do lendário Arthur, e a L4-NC3-L07, o principal defensor de Marte. E por aí vai.

Nomes que não são nomes

Em algumas histórias, os personagens simplesmente não têm nomes, e são apresentados por títulos. Talvez o exemplo mais famoso da ficção seja Doctor Who, em que o personagem é chamado apenas de Doutor (no momento, Doutora). Na trilogia Comando Sul, de Jeff Vandermeer, simplesmente não há nomes: os personagens são definidos por suas ocupações. A psicóloga, a topógrafa, o marido. O mesmo acontece em Ensaio Sobre a Cegueira, do Saramago (e aqui estou eu usando como exemplo livros que ainda não li e que ficam me encarando da estante).

Considerações práticas

Aliterações

Tem um tipo de nome que fica marcado profundamente na cabeça dos leitores: aliterações (repetição de fonemas). São fáceis de lembrar, e grudam como chiclete. Justamente por isso, é bom fazer pontualmente, pra não ficar enjoativo ou simplesmente bobo. Toda criança lembra facilmente de Bilbo Bolseiro, e nenhum adulto tem permissão de esquecer Bastian Balthazar Bux (nosso maior herói).

O reino das aliterações, sem dúvida, é o das histórias em quadrinhos. Simplesmente não dá pra competir com a enxurrada de iniciais repetidas. Peter Parker, Lex Luthor, Matt Murdock, Pepper Potts, Stephen Strange e… você entendeu.

Action Comics n. 252, The Supergirl from Krypton!. Maio de 1959.

Pronuncie!

Todo nome que criar. Fale. Pronuncie exaustivamente. Repita em voz alta o quanto for necessário para ter certeza de que não soa estranho, ou que gere algum tipo de cacofonia. Existem nomes que quando escritos são ótimos, mas logo que alguém os pronuncia, parece que nunca deveriam ter sido escritos. Recentemente vi uma história sobre um narrador de RPG britânico que criou um castelo muito importante para sua campanha, mas que só foi falar o nome dele em voz alta na mesa de jogo. Quando os personagens chegaram a Glory Hall, os jogadores quase encerraram a sessão porque não paravam de rir.

Nomes duplos ou ainda maiores

Não é uma prática muito comum (pelo menos no que eu costumo ler) a de dar nomes duplos, ou ainda maiores, a qualquer personagem. Ainda que não seja corriqueira, é uma ferramenta bem útil para o autor, que pode variar entre esses nomes na hora de chamar o protagonista, tornando o texto menos repetitivo. Isso vale para os títulos que o personagem carrega, que também ajudam a alternar as palavras.

Irandhir Santos como Quaderna, na adaptação de A Pedra do Reino. © TV Globo, 2007.

Em A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, o protagonista é Dom Pedro Diniz Ferreira Quaderna, que se autointitula Cronista-Fidalgo, Rapsodo-Acadêmico e Poeta-Escrivão. O romance é escrito em primeira pessoa, então esses títulos poéticos são usados pelo próprio narrador quando faz referência a si próprio, mas outros personagens o chamam ora de Pedro, ora Diniz, e na maioria das vezes, Quaderna. Apelidos e alcunhas também são opções viáveis e falam bastante sobre a relação que os personagens têm uns com os outros (aqueles mais próximos usam um nome, os mais distantes são mais formais e usam sobrenome) e assim por diante.

Diferencie as pessoas pelas iniciais

Se você tem mais de um protagonista, ou simplesmente personagens demais na história, uma boa alternativa para não se confundir o leitor (ou a si mesmo) é a de variar nas iniciais de cada nome. O que primeiro me vem à cabeça é As Crônicas de Gelo e Fogo. Ao longo de todos os livros publicados há menção nominal a (literalmente) milhares de personagens. Se a gente pensar só no núcleo dos Stark, temos Arya, Bran, Catelyn, Eddard, Jon, Rickon, Robb e Sansa. Do lado dos Lannisters, Cersei, Jaime, Joffrey, Myrcella, Tyrion e Tywin. Mesmo os nomes que começam com as mesmas letras têm sonoridades bem diferentes entre si, o que ajuda a diferenciá-los no mar de ípsilons em lugares estilosos.

Épocas e regiões

Essa parte exige um pouco mais de pesquisa. Se a sua história se passa em alguma época real específica, ou em uma região com a qual não está acostumado, é importante ver se esses nomes existiam naquele tempo e local. Listas daqueles mais populares por lugar e por século são relativamente fáceis de encontrar na internet, e podem ser uma mão na roda até para dar ideias de nomes novos.

Aparando as rebarbas

Leitura sensível

Se sua história tiver nomes de verdade, baseada em línguas, religiões e culturas reais, tente procurar alguém que conheça e, preferencialmente, tenha vivenciado aquilo. É perigosamente comum a existência de personagens chineses com nomes japoneses, por exemplo, bem como a criação de protagonistas que tenham nomes “africanos”. Sua personagem vem de qual dos 54 países da África? O nome dele vem de qual dos mais de 1500 idiomas de lá?

Nomes unissex

Não é bem uma rebarba, mas algo para se tomar cuidado. Há muitos nomes que podem servir para personagens de diversos gêneros, e caso isso não seja feito com atenção, pode deixar o leitor confuso – a menos, é claro, que essa seja justamente a intenção.

Nomes de criminosos

Quando estiver criando uma história contemporânea, com nomes que a gente conhece, é importante fazer uma checagem de segurança no Google. Isso é relevante quando seu personagem tem nome e sobrenome e ele sempre é visto ao longo do texto: pesquise na internet e veja se já não existe alguém muito notório que divide a mesma alcunha. Além disso, se na sua história existir algum maníaco criminoso doidíssimo, tente dar a ele um nome ligeiramente estranho, com letras diferentes, ou então um sobrenome com altas chances de não existir. Por quê? Você corre o risco do seu leitor, ou de alguém famoso, ter o mesmo nome que esse vilão. Dependendo da pessoa, ela pode ficar chateada, ou perturbada, e até perseguir com algum processo. Ou com uma faca de cozinha.

Finalmentes

Nomes estão, pra mim, entre as coisas mais importantes na hora de pensar em personagens e lugares pras histórias que a gente cria. É normal ficar ruminando sobre determinada escolha para ver se ela vai dar certo, mas tem vezes que só o tempo diz o que funciona bem ou não. Estabelecer uma onomástica consistente é um desafio, mas também é uma das partes mais divertidas (tenho conceitos de diversão bem peculiares).

Quando a Jana Bianchi e toda uma galera (eu incluso) se reuniram para criar a Mafagafo, muitas alternativas foram levantadas, mas esse nome acabou sendo vencedor. Uma das preocupações na época era a de que o nome não tinha nada a ver com esse tipo de publicação, mas me lembro que o Rodrigo van Kampen apontou pro fato de que, sozinho, todo nome é ruim, mas depois de um tempo fica bom. Claro que essa regra não vale pra tudo, mas hoje não consigo sequer cogitar a possibilidade de chamar a revista de Terraplana ou Mundos em Série, algumas das alternativas da época que no momento me dão arrepios só de escrever.

Os apontamentos que eu fiz aqui são bem gerais e pessoais, e podem não se adequar a todo narrador, mas podem ser uma sementinha de algo maior. No fim, criar nomes é uma batalha por si só, e só triunfa quem se prepara melhor pro combate. Pesquisar, ser atento, pedir opiniões de colegas (e ser aberto a críticas) sempre ajuda a deixar as coisas nos eixos.

Tem algum nome de personagem interessante que tenha criado? Ou não concorda com a escolha de algum autor pra batizar seus personagens? Divide aqui com a gente!

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