No começo de 2019 rolou o financiamento coletivo de Skyfall, dedicado a financiar uma campanha seriada de RPG no YouTube, com 10 episódios. O cenário, criado pelo Mestre PedroK, teve uma tremenda recepção do público, e hoje está sendo adaptado para o sistema T20, não só acompanhando o grande sucesso de Tormenta20, como também se tornando o mais novo jogo da Jambô Editora. Não falei sobre isso por aqui, na época, mas fui o responsável pela cartografia do continente de Opath.

Um ano depois, o Pedro entrou em contato comigo mais uma vez para outro mapa: Alberich, a maior metrópole do cenário. Capital de Thur Thur,  a cidade é cheia de peculiaridades que foram bastante divertidas de trabalhar durante a concepção da cartografia — entre elas, a característica extremamente geométrica de sua fundação. Muito dela pode ser visto na crônica 3 Portas, no canal da Formação Fireball, antes do livro com detalhes venha a público. Apesar de eu ter tido acesso ao texto, não vou falar sobre a cidade em si, e sim sobre o processo de criar a ilustração, porque sei que é algo que pode ajudar bastante gente a criar seus próprios mapas — muitas pessoas me perguntam que programas eu uso e, apesar de existirem vários específicos para desenhar mapas, acredito que eles restringem demais qualquer tentativa de fazer algo realmente original, então recorro ao bom e velho desenho à mão (no caso, desenho digital).

Eu participo de alguns grupos de cartografia nas internets, apesar de ser mais um observador do que um membro ativo em qualquer um deles (me cutuquem!), e tem uma coisa que sempre acontece quando uma pessoa posta um mapa legal: alguém vai perguntar “que programa você usou pra fazer?!”. Isso acontece porque — você já deve saber disso — existem muitos aplicativos de desenho voltados especificamente para fazer mapas de fantasia, sendo o Inkarnate talvez o mais famoso hoje em dia (quando isso aqui era tudo mato, a gente se virava com o AutoREALM e o Campaign Cartographer). O fato de existir formas automatizadas de fazer mapas facilita tanto o processo de desenho que acaba desencorajando as pessoas a… desenhar. A parte curiosa é que quando alguém posta um mapa muito bonito feito no Inkarnate, ninguém pergunta “que programa você usou?”… porque todas as artes feitas nele acabam saindo muito parecidas.

Vale aqui uma observação: não tenho absolutamente nada contra esses recursos para fazer mapas caseiros. A questão é que vejo muita gente seguindo nessa vereda para vender mapas — o que até acho válido, mas é especialmente difícil de se destacar assim, já que você estará usando os mesmíssimos elementos que todo mundo usa.

Já percebeu que eu comecei um texto sobre o mapa de Alberich e estou fazendo um desabafo sobre isso tudo né? Pois é. Toda vez que eu postei algum pedacinho desse mapa (ou de qualquer outro) na internet vieram me fazer as mesmas perguntas, então achei que seria legal escrever um pouco sobre o meu processo. Primeiro porque adoro falar sobre mapas, segundo porque acho que pode ajudar mais gente a se arriscar fora da caixinha do Inkarnate. Mas vamos ao que interessa!

Fiz o mapa de Alberich usando três programas do pacote Adobe: Illustrator, Photoshop e InDesign. Eles não têm nada automático voltado para mapas, e só usei as funções mais básicas possíveis de cada um, então são coisas que podem ser feitas em qualquer programa de edição de imagens (ainda que eu imagine que possa ser meio difícil, sei lá, fazer isso no Paint). É importante frisar isso porque o seu trabalho não depende das suas ferramentas, e sim do que você faz com elas — dá pra fazer coisas maravilhosas usando só lápis de cor, por exemplo.

Antes de qualquer janela aberta no computador, usei uma tecnologia ancestral para me conectar à visualização dessa empreitada: papel e lápis. Antes de pensar no mapa em si, eu tentei imaginar como ele se encaixaria em uma moldura — no caso, a ideia inicial do Pedro era de fazer uma ilustração de página dupla, então meu primeiro rascunho simulava essa situação (pode ver o contorno de uma página ali nos rabiscos).

Essa ideia logo foi descartada, e passei a pensar em outras formas de leiaute (ou layout, que parece mais chique). Pensar no leiaute, nesses casos, é uma das coisas mais úteis que você pode fazer ao planejar uma ilustração, e não só um mapa: o leiaute é, grosso modo, o planejamento de onde cada coisa vai ficar na versão final. É bem útil fazer isso com versões em miniatura do seu desenho, porque te força a pensar nos contornos, na simetria e em como tudo vai se encaixar.

Eu acabei não fazendo todas essas etapas no papel, mas é interessante pensar até mesmo onde vai ficar cada caixa de texto, as legendas, a rosa dos ventos… enfim, toda a informação que vai estar lá quando estiver pronto. Assim que eu fiquei feliz com um leiaute básico, eu passei a trabalhar no computador. Se fosse um outro estilo de mapa, eu poderia fazer tudo usando papel, caneta, lápis de cor, aquarela etc… Nesse caso, essa ilustração foi toda digital para o estilo ser semelhante ao do mapa do continente, que também tinha essa característica. Dessa forma daria pra ter unidade entre as ilustrações.

A partir daí seria só digitalizar/fotografar os rascunhos básicos e desenhar por cima deles, certo? Certo. Foi o que eu fiz? Claro que não, porque nessa quarentena eu estou com o nível de concentração de um pinscher. Assim que eu pensei em começar a fazer a ilustração digital, fui acometido por um mal terrível: o da precisão. Não é um mal, na verdade; é algo bem útil quando você está tentando fazer algo muito detalhado. No meu caso, eu nunca havia feito um mapa urbano dessa complexidade, do nível de desenhar os quarteirões de uma cidade de milhares e milhares de habitantes.

Parece simples ir só fazendo os quarteirões e as ruas, mas… quantos quarteirões? Se Alberich tem X habitantes, qual é o tamanho dela? Isso depende de saber o tamanho das casas, das quadras, das ruas, quantas pessoas moram cada casa, em média… Não dava pra eu simplesmente sair desenhando, porque realmente sinto falta de saber essas coisas com mais detalhes. E o que eu fiz? Fui consultar um artigo gringo que sempre uso, acabei me animando demais e até traduzi ele aqui pro site na época — sim, eu gastei uma semana do prazo que tinha só para poder estudar, o que resultou no artigo Demografia Medieval Simplificada e na Calculadora que o complementa. E valeu muito a pena!

Assim, comecei a desenhar a cidade pelo seu tamanho, baseado no total da população, e colocando alguns dos marcos geográficos que o Pedro havia descrito no texto. Algumas coisas acabaram aparecendo depois, devido à pesquisa e a algumas lógicas do cenário que deveriam ser cumpridas.

O primeiro desenho no computador foi uma ilustração vetorial, que se tornaria a base para o trabalho final. Fiz no Illustrator, mas também poderia ter usado o Inkscape. Nessa parte, eu fiz o leiaute básico, as linhas guia que mostrariam a posição das ruas, do rio etc, depois comecei a desenhar as ruas, uma a uma. Como boa parte de Alberich é planejada e geométrica, o fato de usar desenho vetorial ajuda muito, porque isso facilita o desenho das formas e permite selecionar um grupo de linhas e aumentar ou diminuir a espessura delas conforme a necessidade. Assim, eu conseguia controlar a largura das ruas. Com uma simples regra de três, sabendo a escala em que eu trabalharia, eu sabia que um traço de X milímetros representava uma rua de Y metros de largura. Esse tipo de detalhe não aparece na legenda do mapa final, mas é perceptível na ilustração: estradas, avenidas, ruas e vielas de tamanhos específicos. As mais largas tinham 30 m, e as menores 2,5 m, ainda que o mapa não mostre todas (e elas acabaram ficando mais estreitas na versão final). 

A versão base do mapa estava pronta, com os elementos desenhados em diversas camadas diferentes, quando passei o arquivo para outro programa, voltado à edição de imagens e pintura digital. No meu caso, fiquei entre o Photoshop e o Krita, que ultimamente tem sido minha preferência para desenho (e é gratuito; outra alternativa livre é o GIMP). O programa de edição é onde o trabalho pesado acontece, ao adicionar cores e efeitos sobre a base pronta: como as ruas estavam em uma camada separada na ilustração, eu pintei os bairros por baixo delas, ao mesmo tempo que as deixava com efeitos de brilho, contorno e sombra para dar a impressão dos quarteirões estarem em relevo. Além disso, foi nessa etapa que desenhei a parte externa das fazendas, as áreas de mata, o relevo das colinas do entorno, as estradas rurais, a sombra das muralhas e dos morros de Alberich, textura… enfim, todo o resto. A malha hexagonal foi feita no Illustrator, e aqui só tive o trabalho de mudar a forma como a cor dela se comporta.

Acima: uma das últimas etapas do desenho vetorial. Abaixo: a versão final, muitas camadas de desenho depois.

A última etapa desse mapa foi a de inserir os rótulos de cada ponto de referência, além da legenda, do título e as demais informações. Isso também pode ser feito em um programa de edição de imagem (quando fiz o mapa de Opath, fiz tudo assim!), mas como eu sabia que viria a exportar o mapa de Alberich em diversos formatos, preferi passar essa parte para outro aplicativo, o InDesign. Ele é usado basicamente para diagramar, então não criei nada ali além do texto, só organizei: a rosa dos ventos e a faixa do título também foram arquivos que fiz separados no Photoshop, e o programa de diagramação me ajudou a inserir de um jeito mais prático.

Apesar do texto original de Alberich não mencionar a existência (ou ausência) de um rio, conversei com o Pedro sobre a inclusão de um corpo d’água próximo — por mais mágica que seja, Alberich é uma metrópole, e essa gente toda precisa de água. É comum que cidades se formem em áreas com acesso fácil a suprimentos, água e a uma boa condição de se manterem seguras. Isso fez com que ao longo do desenho a gente fosse conversando, e fui desenhando as ruas conforme eu estudava a história local: o heptágono central é feito sobre ruínas de outra cidade, então ele é todo planejado, enquanto a parte fora dele é mais caótica quanto mais distante das avenidas principais e das muralhas centrais, mostrando como a proximidade com o núcleo urbano ajuda a manter certa ordem.

Algo legal que ocorre nesse processo é ver a quantidade de informação nova que surge a cada rua que é desenhada. De fato, uma das últimas coisas que acabei fazendo foi elaborar um documento mostrando o que poderia ter em cada lugar, baseado nas características geográficas. Por mais que eu tenha me baseado totalmente no texto do Pedro, é claro que ele não me deu a descrição exata da posição de cada coisa — eu criei em cima disso, e com a pesquisa que fiz no meio tempo, acabei acrescentando muitos elementos que ele vai poder usar na construção do cenário, como canais de irrigação, o relevo da vizinhança e algumas características da formação urbana.

Demorei mais ou menos um mês para concluir esse mapa. Nesse período eu conto não só a parte do desenho em si, como também a pesquisa envolvida na hora de pensar na localização de cada coisa. Claro que não pensei num sentido e significado específico para cada rua — boa parte do traçado de todas elas é quase aleatório. O que eu fazia era pensar bastante nas ruas principais, mais largas, e em como elas se comunicavam com as áreas mais remotas; a partir delas eu desenhava as ruas mais estreitas, num verdadeiro processo de capilarização, ainda que seguindo uma lógica: por exemplo, onde eu já havia definido que seria um morro, as ruas deveriam seguir de forma concêntrica, ou então caminhando pelas encostas.

Uma das coisas que fiquei sopesando bastante era a “cara” de ilustração digital, quando o mapa fica com contornos demais, muitos efeitos especiais sobrando e coisa do tipo. No fim acredito que consegui fazer um mapa com muita coisa mas sem ficar com coisa demais, de um jeito meio híbrido: a parte da cidade em si está bastante digital, com feição de Google Maps, e a área externa remetendo um pouco mais à ilustração tradicional, com as duas coisas unificadas por meio das cores.

Apesar de eu ter outros mapas postados na internet (inclusive o outro que fiz de Skyfall), não costumo falar sobre o processo de cada um — algo que pretendo mudar daqui em diante, então é bem provável que surjam outros textos como esse por aqui. 🙂

E você? Costuma fazer mapas? É tão rabugento quanto eu quando se trata de Inkarnate? Tem alguma técnica secreta pro café manchar o papel do jeito certo na hora de envelhecer seus pergaminhos? Conta pra gente!